Incrível, repleta de suspeições, lapsos e gritantes contradições, a investigação sobre o assassinato do tenente-coronel reformado Paulo Malhães, torturador confesso, alonga-se há nove dias.
Clamoroso desafio à Comissão Nacional da Verdade que considerou o ex-agente do CIE (Centro de Informações do Exército) como a mais importante testemunha do sistema de violação de direitos humanos durante a ditadura militar, este mistério – ou negligência — é também um insulto: aos brasileiros que nas últimas semanas se defrontaram com um dos capítulos mais sangrentos da nossa história na passagem dos 50 anos da quartelada que o iniciou.
Malhães foi rendido junto com a mulher, à luz do dia, na entrada do sítio onde morava na zona rural de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense. Os três bandidos portavam as armas da coleção do militar. A mulher e o caseiro, ameaçados de morte e trancafiados em outros cômodos, dez horas depois descobriram o cadáver com o rosto enfiado num travesseiro.
A guia de sepultamento providenciado às pressas mencionava como causa mortis um problema cardíaco (preexistente), acrescido de edema pulmonar e isquemia do miocárdio, as duas últimas ocorrências causadas eventualmente por infarto agudo, intenso estresse ou asfixia.
O caso foi entregue à Polícia Civil do Estado do Rio (embora a Comissão Nacional da Verdade seja órgão federal), que logo produziu a hipótese de latrocínio: teriam sido roubados computadores, joias e a coleção de armas, O casal vivia com algum conforto, embora modestamente. A viúva, dona de casa, veste-se com simplicidade, não aparenta inclinação para luxos.
Clima de sigilo
Quando a Polícia Federal, depois de pressionada (inclusive pelo Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos), finalmente entrou no caso, verificou-se que computadores e equipamentos digitais lá permaneceram. Então, que latrocínio é este?
Até agora não se divulgou o laudo cadavérico e a perícia do local. Também ficou sem explicação o fato de que a primeira informação sobre o assassinato de Malhães foi divulgada pelo site do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, amigo e companheiro da vítima, ex-chefe do DOI-Codi em São Paulo, notório direitista, um dos mais veementes defensores da ditadura militar.
O único dado concreto que veio à luz é incompleto: o caseiro, ajudado por dois irmãos, participou do latrocínio. Estão presos, mas não há notícias do quarto elemento, possivelmente mascarado, foragido. Evaporou no mato.
Tudo muito estranho, duvidoso, reticente. Sobretudo, inquietante: a importância do personagem e sua eliminação não admitem tamanha omissão. Ninguém está reclamando uma revisão ou revogação da Lei da Anistia. A presidente Dilma Rousseff foi inequívoca ao comprometer-se a respeitar os pactos que permitiram a redemocratização. Em troca, os comandantes das três forças prometeram investigar o que se passou em sete instalações militares sabidamente identificadas como centros de tortura.
A hipótese de queima de arquivo não é a única. Malhães era um tipo truculento, já mandara avisar a bandidagem que infesta o lugar que passaria fogo em quem o perturbasse. Não é absurda a suposição de que tenha sido eliminado pelo narcotráfico, hoje em plena ofensiva não apenas no Rio, também em São Paulo e no resto do país.
Além de mal contada, esta história revive desconfianças e alimenta tensões que já deveriam estar superadas. Uma coisa é certa: o clima de sigilo e clandestinidade que envolve o assassinato do agente da repressão é incompatível com os requisitos mínimos de transparência do Estado de Direito.
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