Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Erros e acertos da campanha #NãoMereçoSerEstuprada

Na edição de maio, a revista Nova estampa na capa que “entrou na luta contra o preconceito”. Há 42 anos no mercado brasileiro, a publicação, oriunda da tradicional Cosmopolitan (EUA), perde a oportunidade de ser a criadora de um debate profundo sobre o tema #NãoMereçoSerEstuprada, ao invés de abraçar um viés sem fundamento argumentativo de qualidade, adotando uma frase que surgiu na internet, estampada mais pela comoção e modinha do que por um embasamento realmente crítico.

O desperdício da Nova ao não ser um veículo forte nessa discussão fica evidente ao observar pontos coerentes apresentados no texto “Ninguém merece” (pag. 146), pois a revista trata de questões importantes deixadas de lado no bafafá postado nas redes sociais virtuais.

Tudo teve início após divulgação de pesquisa publicada pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) no fim de março. Nela, 26% dos entrevistados concordam, total ou parcialmente, que mulheres com roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas. Ignorando os equívocos da pesquisa, a reação a esse dado, seja antes ou depois da correção, foi exagerada por parte das mulheres que deram força a hashtag #NãoMereçoSerEstuprada.

Evidente, ninguém merece ser estuprada, atacada e/ou “encoxada”. O problema da frase não é a mensagem em si, mas o que representa, já que serviu como slogan de uma reação emotiva à delicada temática.

Ao dizer que apoia a campanha, adotando a tag supracitada, a Nova perde em originalidade e não usa seu nome, poder e influência para assumir uma linha editorial própria, sem precisar se escorar em pseudo-ativistas, pessoas que vão no embalo e pensam que segurar cartazes é capaz unicamente de solucionar um problema enraizado na população: machismo e preconceito das próprias mulheres com elas mesmas.

E era para a revista pautar as redes sociais virtuais, não o contrário.

“Recalque aí, né, amiga?”

A Nova, na reportagem “Ninguém merece”, porém, em meio a tais equívocos, traz posicionamentos verdadeiros e que de fato levam à reflexão.

O texto traz uma frase de um psiquiatra gaúcho (Carlos Eduardo Carrion), que expõe um ponto de vista pouco utilizado pela mídia em toda a cobertura dessa polêmica. Ele explica: “Muitas mulheres tiveram que se moldar e se reprimir e têm inveja das que se sentem livres para usar as roupas curtas que elas não se permitem vestir. Por isso acham que as outras merecem ser castigadas”.

Observação factual, considerando algo destacado pela matéria que não deixa escapar: “Mas sabe o chocante? Dos 3.810 entrevistados (na pesquisa do Ipea), 66,5% eram mulheres”.

Outra questão positiva exposta por Nova é esclarecer que a mulher tem a autonomia de se vestir como bem quiser – de vestido curto ou comprido, de calça larga ou shortinho. Quem é adepta da um estilo conservador não deve reprimir as que são liberais e vice-versa. Num estupro, como o texto bem coloca, a culpa jamais é da vitima. Estuprador ataca, infelizmente, mulheres com as mais diversas vestimentas, não necessariamente as que usam roupas que mostram o corpo.

Afirma categoricamente o texto: “[As mulheres] pedem outras coisas: prazer, sexo gostoso e que sua feminilidade seja valorizada. Tudo com consentimento. Nunca com violência”.

Feminina, feminista, feminismo

Durante quatro décadas a Nova conquistou um público feminino bem específico. Quem é adverso à forma de como a revista trata as mulheres, ironiza as capas e reportagens que as páginas da publicação traz – a mais famosa das zueiras é a capa da TPM com a atriz Alice Braga.

O feminismo passou por mudanças ao longo de todos esses anos de atividade da Nova. Independente do que fora feito, agora era a chance de a revista tomar um posicionamento enfático e revolucionário, com uma grande reportagem, com um especial para destrinchar o assunto #NãoMerecoSerEstuprada. Não necessariamente dar um destaque de capa – fugiria muito das características da revista –, mas a abordagem do tema poderia ter sido outra.

Com considerações interessantes e não apresentadas anteriormente em nenhum outro veículo, alguns trechos da reportagem “Ninguém merece” mostram que a revista Nova tem potencial para fazer algo substancial, sem seguir essas brisas da internet.

Uma das revistas femininas mais importantes do Brasil, Nova deveria ter discorrido sobre o tema com densidade. A reportagem não merecia apenas duas páginas em uma edição de 170 páginas, muito menos ser um produto essencialmente requentado.

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João da Paz é jornalista