Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Entre a ciência de ponta e a inércia política

Apesar dos esforços globais – insuficientes? – para se emitir cada vez menos gases que possam interferir em nosso sistema climático, medições atuais indicam cenário desolador. Algo parece estar dando errado: mesmo com tanto debate acerca do tema, e com cada vez mais iniciativas para atenuar os piores cenários climáticos visionados por cientistas, as emissões globais de gases-estufa entre 2000 e 2010 aumentaram em ritmo mais apressado do que nas três décadas precedentes.

Essa é uma das considerações apresentadas no recém-divulgado relatório do Grupo de Trabalho 3 (WGIII, na sigla em inglês) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

“Somente em 2010, 49 gigatoneladas de carbono foram emitidas na atmosfera; foi o maior nível da história desde que se iniciaram as estimativas”, disse a engenheira Suzana Kahn, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do WGIII. Em evento realizado nesta semana no Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa em Engenharia (Coppe), na capital carioca, Kahn lembrou que ainda não foram feitos os cálculos para os anos de 2011, 2012 e 2013 – mas os níveis emitidos nestes anos foram, muito provavelmente, mais elevados.

Não é uma conversa nova. Relatórios e discussões têm há décadas indicado tendências similares. Mas na esfera política a letargia perdura.

Um dos temas mais caros aos autores do IPCC é a produção de energia. De acordo com Kahn, houve a partir de 2010 aumento significativo na produção energética baseada em carvão – o que intensificou as emissões de carbono no setor industrial.

E, quando o assunto é energia, comumente ao petróleo é reputado o papel de algoz. “Porém, entendemos que hoje o ‘vilão’ não é exatamente o petróleo, mas sim, o modelo de desenvolvimento de nossas sociedades, que não é sustentável”, esclareceu Kahn durante o evento na Coppe.

São questões como essa que, segundo a pesquisadora, nutrem discussões intermináveis – que varam a madrugada – entre cientistas e representantes de Estado, quando se reúnem para dar a canetada final que resulta nos sumários executivos dos relatórios do IPCC.

Burocracia nada inocente

Aos menos familiarizados com o assunto, vale lembrar: os cientistas do IPCC produzem um longo relatório que é, em seguida, sintetizado em um pequeno sumário técnico. Adiante, com base nesse documento, pesquisadores e representantes de Estado reúnem-se para produzir outro texto – que é o sumário executivo, destinado aos tomadores de decisão da esfera política.

Singelo detalhe, entretanto, tende a embaçar o entendimento público da questão. “É que o sumário executivo é uma seleção que os governos fazem apenas com as informações que julgam politicamente relevantes”, revelou Kahn. Como conciliar interesses e conveniências de mais de 190 países a partir de um relatório científico que coloca o dedo na ferida da civilização e questiona as mazelas profundas de nosso modelo econômico?

“O sumário executivo, assim, tende a ser fraco, genérico, pouco enfático e sem grandes mensagens”, resumiu Kahn. É, para alguns, mais um documento diplomático do que propriamente científico. No entanto, esse é o texto que costuma ser amplamente divulgado; é essa versão – politizada – que acaba se disseminando. “As pessoas muitas vezes confundem”, ressaltou Kahn. “No meu entendimento, é exatamente o sumário técnico que deveria ser mais divulgado; pois nele não há interferência alguma dos governos.”

A velha história

“O trabalho desenvolvido pelo WGIII foi muito bom e levantou questões que ainda não tinham sido abordadas em relatórios anteriores do IPCC, como a insustentabilidade do atual padrão de consumo”, disse Kahn à CH On-line.

E os tecnocratas estão em baixa. “Uma das principais mensagens do último relatório é que será muito difícil, se não impossível, reduzir emissões simplesmente a partir de meras soluções tecnológicas; não basta a tecnologia se não houver mudança real de comportamento e modelos de consumo”, afirmou Kahn.

Aliás, se a sociedade contemporânea estivesse contaminada por uma grave doença, seu nome já seria bem conhecido: consumismo – termo assaz preocupante para a comunidade científica. Com estratégias conservadoras de mitigação, isto é, mantendo-se intacto o modelo vigente da economia global, estima-se que o consumo daqui em diante aumente entre 1,6% e 3% ao ano; enquanto se estratégias mais audazes forem implementadas, esse número ficaria em torno de 0,06%.

De acordo com os modelos climatológicos compilados pelo IPCC, o cenário mais temerário é que a temperatura média da Terra aumente mais de 8 ºC até o fim do século. Na melhor das hipóteses, deve aumentar apenas 2 ºC. Para que isso aconteça, teríamos de reduzir as emissões de gases-estufa em 40% a 70%, em relação aos níveis de 2010, até 2050; e deveriam ser reduzidas a patamares próximos de zero até 2100, reza o novo relatório.

O físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo e também membro do IPCC, acredita que os desafios climáticos já não mais são de natureza científica. “São de natureza política”, disse no evento da Coppe. “O grande problema, a partir de agora, é a construção de uma governança global eficiente, capaz de gerenciar os cenários climáticos de maneira responsável.” Segundo Artaxo, essa almejada estrutura institucional de governança não será resolvida em meia dúzia de reuniões. Levará décadas.

Entre a inércia e o pessimismo, entretanto, talvez haja luz no fim do túnel. Segundo os pesquisadores, espera-se que, nas próximas duas décadas, investimentos na geração de energia a partir de fontes renováveis aumentem cerca de 147 bilhões de dólares; ao passo que investimentos em energia fóssil devem cair 30 bilhões de dólares.

Mas tênue é a diferença entre o otimismo e a ingenuidade. Para muitos cientistas, é ingênuo esperar mudanças efetivas enquanto as regras do jogo da economia global continuarem as mesmas. Necessária pergunta: há algum horizonte promissor para que as regras de fato mudem? “Não estou otimista”, respondeu Kahn.

O relatório, assinado por 235 cientistas oriundos de 58 países e aprovado na primeira quinzena de abril, na Alemanha, é a terceira e última etapa de um trabalho que vem sendo elaborado desde 2009. A primeira parte dessa empreitada, divulgada em setembro de 2013, foi a publicação do Grupo de Trabalho I (WGI) do IPCC, que apresentava o conhecimento atual sobre as bases físicas do sistema climático. O segundo documento, publicado em março deste ano, ficou por conta do Grupo de Trabalho II (WGII), e versava sobre impactos, adaptação e vulnerabilidade. Somadas, as três partes formarão o tão esperado Quinto Relatório de Avaliação – ou, para os íntimos, AR5. A publicação é esperada para outubro de 2014.

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Henrique Kugler, do Ciência Hoje On-line