Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Contabilidade tétrica

Quem defende as barbaridades cometidas pelo regime militar no Brasil costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime. Assim, reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra os seus. Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um lado e de outro. Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade.

Estudo diz que auditorias ao redor do mundo estão cheias de problemas. Distribuidoras contabilizarão empréstimo da CCEE. Taxas de juros das operações de crédito voltaram a ser elevadas em março. Anefac: juro subiu em março para consumidor e empresa. Doleiro depositou R$ 160 mil na conta de membro do diretório do PP.

De que fomos cúmplices?

O arco de cumplicidade dos atentados contra o regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era enorme, era o estado brasileiro. Quando falamos nos “porões da ditadura” em que pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou pagas pelo poder público – quer dizer, por todos nós.

A cumplicidade com o que acontecia nos “porões”, em muitos casos, foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a participação de empresários e outros civis na chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da repressão, por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.

A contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa pela memória do país e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram. Todas as mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num confronto com as forças do estado na selva em que ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices involuntários.

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Luis Fernando Verissimo é jornalista e escritor