A sessão do Senado do dia 22 de abril não teve apenas a aprovação do Marco Civil da Internet. Durante seus discursos, 15 senadores fizeram questão de citar a Avaaz, comunidade virtual conhecida pelas petições on-line, e outros grupos ativistas pela luta na aprovação do projeto, que, depois de cinco anos de discussões, definiu os parâmetros para a internet no país. Mais do que só um rapapé político, foi o reconhecimento do peso que o ativismo on-line atingiu na política brasileira.
O sucesso no Marco Civil define o auge no Brasil, até agora, das campanhas nascidas na internet. Há quase um ano, em junho de 2013, protestos iniciados na rede contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo levaram milhões às ruas contra os gastos da Copa do Mundo, a corrupção e a falta de serviços básicos. Na esteira, aumentos de passagens foram cancelados em todo o país e o Congresso – invadido em uma das manifestações – aprovou às pressas projetos parados há anos, como o fim do voto secreto no caso de cassações e a destinação de royalties do petróleo para a educação e a saúde.
“O net ativismo é um novo tipo de ecologia social”, diz Massimo Di Felice, coordenador do Centro de Pesquisa Atopos, da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “As redes sociais levantam o desejo de um novo tipo de participação da população, que não se limita apenas a eleger alguém a cada quatro anos”.
Neste ano, o calendário brasileiro faz com que sejam também temidas ações mais radicais de grupos de “hack ativismo”, segundo relatórios de previsões de ameaças. “O ano de 2014 tem um caráter político muito forte. No Brasil, vai ter Copa, estamos em um ano de eleições. No ano passado, vimos muito ativismo ocorrendo nas ruas e no ano retrasado muito ativismo ocorrendo de forma digital. O ativismo digital é uma tendência”, afirma Bruno Zani, gerente de sistemas da McAfee Brasil, empresa de segurança digital, subsidiária da Intel Corp.
O “hack ativismo” tem como uma de suas características provocar a indisponibilidade de sites de governo e de grandes corporações, entre outros alvos, com ataques que os especialistas chamam de negação de serviço. “Isso vai continuar acontecendo porque é uma forma de chamar a atenção”, afirma Zani. E explica que a indisponibilidade de um site ou de uma aplicação não é o mesmo que uma invasão. “Não necessariamente porque o site do seu banco ficou fora do ar por causa de um hacker ele teve acesso ao seus dados. O ataque ativista é, em essência, um ataque que causa indisponibilidade, até porque é mais fácil de ser realizado.”
Centro de adesão
Usar a tecnologia para divulgar e atrair seguidores para causas políticas não é exatamente novidade. Em 1990, a Lotus, então um gigante da informática, teve de recuar depois do lançamento de um produto chamado Marketplace: Household, que trazia em um CD-ROM nomes, endereços e hábitos de consumo de 120 milhões de americanos, depois que 30 mil pessoas enviaram e-mails ou mensagens eletrônicas para a empresa, no que é considerado o primeiro protesto on-line. Diante da pressão, a Lotus cancelou o lançamento.
Em 1994, veio o acontecimento que moldaria boa parte da atuação do ativismo on-line. No dia 1º de janeiro daquele ano, o Exército Zapatista de Libertação Nacional iniciou uma rebelião no Estado mexicano de Chiapas que durou 12 dias e teve repercussão internacional. Com os rostos cobertos, os guerrilheiros, comandados pelo misterioso subcomandante Marcos, pediam justiça e direitos para os povos indígenas e pobres do México. A forma bem-humorada e articulada de se comunicar, usando um meio nascente, a internet, criou o primeiro protesto global, mobilizando apoiadores em várias partes do mundo e inspirando uma imprensa alternativa internacional.
“Foi um marco. O rosto coberto dos black blocs e dos Anonymous vem dos zapatistas, assim como a recusa da luta pelo poder, a aversão às tradicionais bandeiras ideológicas e aos partidos políticos de qualquer tendência e a possibilidade de criar uma comunicação própria, como alternativa às mídias oficiais”, diz Di Felice. “Esses elementos já se encontravam todos no zapatismo.”
Mas foi com o surgimento das redes sociais, a partir de 2004, que o ativismo digital chegou às massas. Naquele mesmo ano, mobilizações on-line levaram a protestos de rua e à anulação das eleições na Ucrânia, movimento chamado de “revolução laranja. Em 2009, o Twitter foi a ferramenta da “revolução verde”, as manifestações contra a reeleição, com suspeita de fraude, do presidente Mahmoud Ahmadinejad, no Irã. A internet facilitou ainda os levantes contra as ditaduras no Egito, Tunísia e Líbia em 2010 e 2011, durante o que se passou a chamar de Primavera Árabe.
Também se coloca na conta do ativismo a derrubada, em 2012, de projetos antipirataria, conhecidos como Sopa, nos Estados Unidos, e Acta, na Europa. Grupos ativistas tiveram outras vitórias, menos conhecidas: no Paquistão, impediram planos para um bloqueio da internet pelo governo e nas Filipinas levaram a Suprema Corte a engavetar uma lei contra crimes cibernéticos. E ainda há os protestos de rua na Turquia, no ano passado. Cabe, então, a pergunta: a internet criou uma nova forma de se fazer política?
“Claro que não é a internet em si, mas certamente facilita que as causas cheguem a mais gente”, diz Michael Freitas Mohallem, do Avaaz. Criado em 2007, nos Estados Unidos, o site tem versões em 15 línguas e atua globalmente, com 35 milhões de associados. Não apenas põe no ar abaixo-assinados, como mobiliza financiamento de campanhas, organiza a pressão sobre governos e congressistas e, em algumas causas, também protestos nas ruas. “O ativismo funciona. Um movimento on-line pode aglutinar mais pessoas e de uma forma rápida.”
As campanhas de doação do Avaaz – o nome quer dizer “voz” em algumas línguas do Oriente Médio e “canção” em persa – já arrecadaram US$ 18 milhões. Sua atuação é alvo de críticas e cercada de suspeições, como a de que o site pertenceria a um bilionário americano de origem húngara e seria um braço de seu “anarcocapitalismo”, um movimento pela radicalização da democracia e do liberalismo. O jornal inglês “The Guardian” definiu a organização como “a maior e mais poderosa rede ativista mundial on-line”.
Na verdade, o Avaaz pertence a dois “think tanks” (centros de debates de ideias), o britânico ResPublica e o americano MoveOn. Ambos também organizam petições on-line e campanhas por doações. Uma delas, em 2008, foi do senador Barack Obama para presidente dos Estados Unidos. As duas organizações criaram o Avaaz como um braço internacional, um sucesso desde o primeiro momento. Já em 2007, o vídeo “Stop the Clash”, produzido pelo grupo, foi visto 2,5 milhões de vezes e eleito o vídeo político do ano por usuários do YouTube.
Entre alguns feitos, o Avaaz levou a rede de hotéis Hilton a passar a treinar os funcionários para identificar e prevenir a presença de escravas sexuais e o governo do Quênia a prender e levar a julgamento os estupradores de uma jovem de 16 anos. Na segunda-feira, a página brasileira convidava os visitantes a pressionar o Banco Mundial contra o despejo de famílias no Quênia, a lutar contra a execução de militantes islâmicos no Egito, a financiar o primeiro estudo mundial sobre a extinção das abelhas e, com mais de 1,1 milhão de apoios, a pressionar Dilma Rousseff a conceder asilo a Edward Snowden, o vazador do escândalo de espionagem da internet e telefones pelo governo americano. No Brasil, conta com 6,5 milhões de assinantes.
As causas são apoiadas em pesquisas anuais sobre os temas que os associados acham que devem ser divulgados. Para manter a independência, o site não aceita doações acima de R$ 110 mensais. A atuação não se restringe a tentar influenciar eventos, mas, às vezes, a se envolver neles. O Avaaz organizou a fuga da Síria de um refém, o fotógrafo irlandês Paul Conroy. O episódio terminou com 13 mortos e críticas à organização, pelo amadorismo.
Se o Avaaz é a maior organização, a face mais barulhenta e anárquica do ativismo digital é constituída de ativistas como o site Wikileaks, de Julian Assange – condenado na Suécia por estupro e que vive na embaixada do Equador em Londres desde 2012, alegando ser um perseguido político – que vaza informações de governos e corporações Há também os hackers do Anonymous, responsáveis por ataques a sites de governos e até de bancos.
O Anonymous não é um grupo, mas um modo de ação. “Só no Brasil, havia no ano passado 178 coletivos que reivindicavam ser o Anonymous”, afirma Sérgio Amadeu, sociólogo, professor-adjunto da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e autor de um estudo que identificou as páginas do Anonymous como as mais influentes nos protestos de rua do ano passado. O Anonymous se define como uma “superconsciência com base na internet”.
“Não há um centro de adesão. Torna-se Anonymous quem quiser. Há coletivos com duas pessoas e ativistas individuais. Também não há uma ideologia única e sim militantes que vão da extrema-direita à extrema-esquerda.”
Avaliação impossível
Hackers brasileiros costumam se envolver em causas mais amplas do que as observadas em países desenvolvidos. É criação de um coletivo do Anonymous a campanha “Não vai ter Copa” na internet, que mereceu resposta da própria presidente Dilma Rousseff (com a hashtag #VaiTerCopa) em seu perfil no Facebook. Também tiveram a marca desse grupo os ataques a sites de prefeituras, que passaram a exibir mensagens contra o Mundial da Fifa, em janeiro. “Os hackers americanos são basicamente preocupados com a ação do governo contra a liberdade e os grupos pró-democracia”, diz Amadeu. “Aqui, temos mais diversidade de temas.”
Por trás das ações desses ativistas está a ideia de uma espécie de sociedade civil mundial, apoiada no que o sociólogo espanhol Manuel Castells chama de “a cultura da internet”: praticamente todos os grupos ativistas pregam a livre informação, o progresso via tecnologia, comunidades virtuais e empreendedorismo. Exceto em casos como o atual conflito na Ucrânia, onde o ex-presidente Victor Yanukovych foi deposto após quatro meses de protestos, por sua proximidade com a Rússia, também não costumam lutar pelo poder.
Quer dizer, quase nunca. O Partido Pirata surgiu em 2006 na Suécia, mesmo país do Pirate Bay, o principal site de compartilhamento de arquivos do mundo, para protestar contra as legislações antipirataria na internet. Espalhou-se pela Europa e na Alemanha o Piratenpartei, eleito para quatro cadeiras em parlamentos regionais em 2011. Também está organizado no Brasil e realizará em Curitiba, nos dias 23 e 24, seu primeiro encontro nacional. A trajetória lembra a dos partidos verdes nascidos dos primeiros movimentos ambientalistas, nos anos 1960, que chegaram a ser importantes na Europa até a década passada.
No Brasil, ainda que nenhum “pirata” tenha sido eleito, o peso da internet na política reflete sua importância na vida nacional. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, o país tinha em setembro 80,9 milhões – ou 49% da população total – de conectados à rede, que passam em média 3 horas e 39 minutos on-line nos dias úteis e outras 3 horas e 43 minutos nos fins de semana, aponta outro estudo, do Ibope. É mais tempo que o dedicado à TV, ao rádio ou qualquer outro meio de comunicação. Pelo menos um terço desse tempo é passado nas redes sociais, palco por excelência das campanhas on-line.
“A internet, aqui, é parte da vida de todos e isso se reflete na política. As pessoas querem opinar e participar e isso leva a uma politização das redes sociais”, diz Mohallem. “Nossos políticos também costumam ser mais conectados e ter uma presença online, ao contrário do que vemos mesmo nos países desenvolvidos, e levam várias causas para o mundo real”, faz coro Sérgio Amadeu.
Foi assim, por exemplo, na aprovação do Marco Civil da Internet. Grupos de ativistas se uniram, em 2009, contra o projeto original da lei contra crimes na internet, que criminalizava a pirataria. Da rejeição do projeto, que na época reuniu meio milhão de assinaturas, nasceu uma nova proposta de regulamentação, baseada em um documento do Comitê Gestor de Internet (CGI), que acabou contando com a adesão de políticos e do governo. A pressão do ativismo também foi importante para manter itens como a neutralidade da rede – a cobrança não discrimina o uso de cada usuário para a internet – contra a influência das empresas de telecomunicação.
Mesmo assim, há limites. Toda a mobilização digital não bastou para impedir a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, ou a eleição do deputado e pastor Marco Feliciano (PSC-SP) para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, casos que fizeram barulho na internet. Tampouco houve grandes avanços na saúde e na educação com os protestos que tomaram as ruas em 2013.
Para o escritor bielorrusso Evgeny Morozov, autor do livro “The Net Delusion: theE Dark Side of Internet Freedom” (A desilusão com a rede: o lado obscuro da liberdade na internet), a mais forte crítica ao ativismo on-line publicada até agora, o problema é que um “like” no Facebook, mudar a foto de perfil para aderir a uma causa ou assinar uma petição on-line podem até parecer ações com resultados, se existem, supostamente próprios, quando, na verdade, levam crédito devido ao trabalho de grupos ativistas tradicionais. E, não raro, as causas podem voltar à estaca zero.
O argumento tem peso. No Egito e na Tunísia, por exemplo, grupos que lutaram por mudanças se desenvolveram e amadureceram por uma década antes do início dos protestos de rua, também motivados pela crise econômica e o preço dos alimentos nos dois países. E se a internet é capaz de mobilizar pessoas para uma causa, ditadores também aprenderam a usá-la para a sobrevivência de seus próprios regimes, seja como forma de divulgação ou para vigiar a oposição. O venezuelano Hugo Chávez foi um notório usuário do Twitter, assim como Fidel Castro, o ex-ditador cubano, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin ainda são.
Victor Yanukovych, impedido de assumir a Presidência da Ucrânia em 2004, pela mobilização surgida na internet contra uma eleição fraudada, acabou eleito seis anos depois, para ser retirado do poder pelas ruas em março deste ano. No Egito, a Primavera Árabe, que começou derrubando a ditadura militar de Hosni Mubarak no Egito, levou ao poder a Irmandade Muçulmana, grupo islâmico radical, e terminou numa nova ditadura, do general Abdul Fattah el-Sisi, depois do golpe militar que afastou em 2013 o presidente eleito Mohamed Morsi, atual prisioneiro do governo local. A “revolução verde” também não impediu a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad no Irã em 2009. Sem falar na China, onde a censura, atingindo até o Google, neutraliza qualquer pressão por abertura política.
Um estudo de dois sociólogos americanos, Kevin Lewis e Kurt Gray, respectivamente das Universidades da Califórnia e da Carolina do Norte, e um alemão, Jens Meierhenrichc, da London School of Economics, também mostra que a mobilização on-line, mesmo se extensa, tende a se esvaziar. Eles acompanharam por dois anos e meio a página “Save Darfour”, uma das mais importantes causas divulgadas no Facebook. Embora a campanha tenha recebido mais de um milhão de adesões, apenas 3 mil pessoas aceitaram doar dinheiro – um total de US$ 90 mil – para os 2,5 milhões de refugiados do conflito no Sudão. Em comparação, a coalizão “Save Darfour”, que reúne organizações religiosas e ONGs, mas em geral não divulga os nomes dos doadores, arrecada US$ 1 milhão por ano.
“A página simplesmente oferece a ilusão de ativismo mais do que algo real”, afirmam os autores. Mais do que aderir à causa, a participação na internet foi um fim em si mesmo. Outro estudo, do canadense Kirk Kristfferson e dos americanos Katherine White e John Peloza, da Universidade de Chicago, chegou às mesmas conclusões.
Há uma razão, segundo uma teoria repetida pelos dois estudos e também no livro “The Net Delusion”: quanto maior a adesão a uma causa, maior a segurança de cada apoiador para não se envolver. Para a imensa maioria, apenas aderir à denúncia de uma tragédia na África – com o Facebook informando a todos os amigos que alguém acaba de curtir a campanha – já é suficiente. “Quando alguém em um grupo desempenha a mesma tarefa dos outros, é impossível avaliar contribuições individuais e as pessoas se tornam negligentes”, diz Morozov.
“Essa crítica deixa de olhar alguns aspectos”, rebate Mohallem. “Na história, formas de protesto surgiram de meios pouco tradicionais. As pessoas gostam de se posicionar e isso é politização.”
Barulho na rede
Na visão mais otimista, a confluência de causas e grupos hoje estaria mobilizando o “superávit cognitivo”, conceito de Clay Shirky, professor da Universidade de Nova York e autor do livro “Cognitive Surplus”. Ele diz acreditar que a internet leva hoje pessoas comuns a usarem o tempo livre de maneira muito mais construtiva do que no século XX, quando a televisão era o principal lazer. “Vivemos em um mundo em que pequenas coisas eram feitas por amor e grandes coisas por dinheiro. Agora existe a Wikipedia e grandes coisas também são feitas por amor.”
Nesta semana, os consulados da Inglaterra, da Alemanha e dos Estados Unidos alertaram os turistas de seus países para o risco de novos grandes protestos na Copa, principalmente no Rio. Os protestos neste ano, por enquanto, não conseguiram mobilizar as mesmas multidões de antes. Mas não é possível antecipar o futuro. “Não podemos prever, pois a ação não é liderada por algum ator em particular ou por um sujeito político”, diz Di Felice. “Não é o caso. Um ano atrás, ninguém podia imaginar que iria acontecer o que aconteceu”, concorda Mohallem. Mas, mesmo que as ruas estejam vazias, uma coisa é certa: na internet, vai ter barulho. (ColaborouTatiana Schnoor)
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Alexandre Rodrigues, para o Valor Econômico