Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Botando no ‘Outro Lado’

A reportagem está prontinha: conta que o cavalheiro pôs fogo na casa, matando os filhos e o cachorro, com o objetivo de receber o seguro dos filhos e do imóvel. Procurado pelo repórter, o cavalheiro informa que mora num apartamento e jamais habitou uma casa, que sofre de esterilidade e não tem filhos (e, portanto, não existe seguro dos filhos), e é proprietário de dois gatos que jamais aceitariam um cachorro em seu lar. E convida a reportagem para visitá-lo, para certificar-se de que mora no mesmo apartamento há anos e que jamais algo ali pegou fogo.

Sai a notícia: o cavalheiro teria posto fogo na casa, matando os filhos e o cachorro, com o suposto objetivo de receber o seguro dos filhos e do imóvel. A resposta, que demoliria qualquer reportagem séria, é transferida para uma coluna ao lado da notícia principal, sob o título “O Outro Lado”, ou algo semelhante. E o texto, com pequenas variações, é “Fulano, ouvido pela reportagem, nega as acusações”.

É uma pena: o tal “outro lado” foi criado para evitar que as vítimas da artilharia da imprensa não tivessem nenhum espaço na reportagem. E se transformou numa obrigação a ser cumprida com o máximo possível de má vontade, em geral apenas para cumprir tabela e fingir que a reportagem não é unilateral. Se o cavalheiro não tinha cachorro, problema dele. Se não morava numa casa, devia morar, porque o cachorro que não tem se sentiria bem melhor. E essa história de sofrer de esterilidade – huuuuummmmm… tem coisa por trás.

Há algumas variações nessa história-padrão. Por exemplo, quando alguém que disponha de algum poder oferece uma reportagem prontinha contra uma empresa, com declarações, aspas, números, tudo para evitar que o repórter menos consciente tenha de trabalhar em excesso. Para garantir a publicação do outro lado, sem correr riscos de que a reportagem seja desmentida, espera-se que se encerre o horário de funcionamento da empresa. Um telefonema por volta das sete da noite permite que a reportagem seja enriquecida com temperos do tipo “procurada por telefone, a empresa não se manifestou. Uma pessoa, dizendo-se segurança (ou zelador, ou porteiro, ou funcionário da limpeza), alegou que não havia no prédio ninguém que pudesse atender à reportagem, e que não sabia quem seriam os responsáveis pelas explicações da empresa”.

Às vezes, o solerte tem azar, e há algum diretor na casa; mas isso permite acrescentar algo do tipo “Fulano de Tal, que se disse membro da Diretoria, disse que só poderia responder às acusações depois de tomar conhecimento delas”.

Quando é reportagem de TV, há mais um ingrediente: o repórter bravo, mostrando sua indignação diante dos fatos que lhe foram revelados por alguém importante e que o acusado teima em desmentir. Os apresentadores têm uma entonação especial para a versão televisiva do “O Outro Lado”: caras, bocas, vozes mostrando que o fulano disse isso, mas somos espertos, não acreditamos, não.

É assim que as “Escolas Base” se multiplicam. O noticiário prejudica pessoas e empresas, os bancos que lhes fornecem crédito se retraem, os compradores escasseiam: afinal de contas, por que fazer negócios com instituições sob suspeita, se há concorrentes contra as quais nada foi divulgado? Que é que as autoridades vão pensar a respeito dos telefonemas entre compradores e vendedores, entre os advogados de ambas as partes negociando os contratos, mais a discussão sobre as comissões a pagar aos vendedores?

Comissão, aliás, que é um tipo de pagamento por vendas existente no mundo inteiro, virou palavrão. Ou é quase um sinônimo de propina ou é uma reunião de pessoas que promove o famosíssimo “rigoroso inquérito”. Como disse um gênio (seu nome escapa a este colunista, no momento), que se pode fazer num lugar em que mãe é xingamento e suadouro é crime?

 

Exemplar, exemplar

No tempo em que os animais falavam (hoje, só postam frases edificantes na internet), uma empresa foi contratada, numa grande cidade, para supervisionar e fiscalizar a coleta de lixo. Não era sua tarefa, nem sua especialidade, fazer coleta e varrição. Mas a presença desta empresa na fiscalização criou forte tensão entre as empresas de coleta de lixo, acostumadas a trabalhar com parâmetros mais elásticos e a medir a produção com certa folga benigna, e provocou uma chuva de denúncias plantadas nas redações. De repente, qualquer falha na coleta de lixo deixou de ser culpa das coletoras: passou a ser da empresa supervisora.

Num determinado dia, uma importante rede de TV mostrou uma montanha de papelão na calçada, pertinho do edifício em que, num dos andares, estava a sede da supervisora. Veio então a matéria terrível: nem na sua vizinhança a empresa era capaz de evitar a sujeira. O apresentador fez todas as caras, bocas e entonações para mostrar seu desagrado com aquela empresa que deveria cuidar do lixo, cobrava por isso e não fazia nada. E, naturalmente, ninguém procurou a empresa.

Pois é: aquela montanha de papelão era o resultado de uma coleta de moradores de rua, comandados por um padre de grande prestígio. Como eram moradores de rua, não tinham galpões, nada. Nem precisavam: em poucos minutos (que, porém, foram suficientes para a gravação), o material foi recolhido pela coletora de produtos recicláveis que o comprava. E os moradores de rua, com o dinheiro recolhido, compraram os ingredientes para sua sopa noturna, a mais substanciosa refeição que consumiriam no dia.

E daí? Daí, o prejuízo estava causado. Não havia desculpas que o amenizassem. A empresa supervisora acabou desistindo do contrato. E o lixo voltou a ser molhado antes de entrar no depósito (para aumentar o peso e, portanto, o pagamento), lesando a cidade sem que os meios de comunicação percebessem nada.

 

Mas tudo passa, tudo passará

As declarações do ex-presidente Lula no Encontro Nacional do PT foram tratadas de relance pelos meios de comunicação – embora ele tenha dito com clareza que o PT foi fundado para ser diferente e não para repetir os erros dos outros. “Hoje parece que o dinheiro resolve tudo”, disse o principal dirigente do partido.

Não foi a primeira vez que Lula disse isso: alguns dias antes, numa homenagem que recebeu em Santo André (SP), fez discurso semelhante, que passou batido por todos os jornais das capitais. Foi percebido apenas pelo Diário do Grande ABC, editado em Santo André, o bom jornal das sete cidades que formam o ABC paulista. Já no título, surge o tom da cobertura crítica: “Lula sugere que parte do PT tira proveito pessoal”. E a reportagem segue acompanhando o discurso e mostrando o panorama do país: Lula acusa o partido de ter mudado e passado a acreditar que recursos financeiros são suficientes para tornar desnecessário o esforço dos militantes, mas se recusa a comentar casos como o do mensalão e o da refinaria de Pasadena. Valeu: colocou as palavras do ex-presidente na moldura dos acontecimentos e mostrou um excelente quadro da situação.

 

O horror, o horror 1

O governador da Bahia, Jaques Wagner, PT, sintetizou numa frase precisa o clima da campanha eleitoral, que transborda para os meios de comunicação e a internet: “A pré-campanha está virando muita destilação de raiva, uma coisa de mata ou morre”.

 

O horror, o horror 2

De um lado, o lamentável Rodrigo Pilha Grassi, ex-assessor da deputada federal petista Erika Kokay (DF), aquele que juntou gente para correr atrás do ministro Joaquim Barbosa, na rua, gritando insultos e repetindo slogans de apoio a José Dirceu; de outro, o senador tucano Aloysio Nunes Ferreira, que foi cogitado até para ser candidato a vice de Aécio Neves. De um lado, um entrevistador que visivelmente não estava interessado numa entrevista, mas em provocar o entrevistado para criar confusão; de outro, um senador que, apesar de tantos anos de Parlamento, se mostrou totalmente despreparado para lidar com situações desagradáveis. Aloysio, provocado, perdeu a calma e esqueceu os bons modos, insultou Rodrigo Grassi com palavrões e tentou agredi-lo; depois, Grassi, que era o ameaçado de agressão, foi obrigado a retirar-se pela segurança, que ali atende pelo pomposo nome de Polícia Legislativa.

Grassi comportou-se mal, ao provocar o entrevistado em vez de entrevistá-lo; mas o destempero de Aloysio fez com que o desordeiro obtivesse até mais do que pretendia. Aloysio não se limitou a perder a compostura: perdeu-a por causa de uma pergunta constrangedora, mas normal, e à qual será certamente submetido outras vezes. Grassi perguntou-lhe o que o PSDB achava da criação das CPIs; e seguiu indagando sobre a possibilidade de envolvimento do próprio Aloysio no cartel do metrô e dos trens metropolitanos em São Paulo. Pergunta chata? Sim; mas, e daí? Se tem resposta, por que não dá-la? Se não tem resposta, não é tentando agredir quem faz a pergunta que esclarecerá os fatos. Grassi foi expulso do recinto, mas quem perdeu, neste caso, foi o senador tucano.

 

O horror, o horror 3

Neste clima de óleo fervente tão bem descrito pelo governador Jaques Wagner, surgem também as ameaças aos adversários. O jornalista Reinaldo Azevedo, de Veja, duro crítico do PT (foi quem criou o neologismo “petralha”, já dicionarizado, que batiza os petistas lembrando os célebres Irmãos Metralha), recebe mensagens segundo as quais “sua hora está chegando” e que vai levar um tiro na cabeça. As mensagens ao ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal, informam que “vai morrer de câncer ou de tiro na cabeça”; e sustentam que contra ele “toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano mas de um monstro”, e que ele deve ser morto.

Os meios de comunicação, com poucas exceções, não dão muita bola para essas ameaças, aparentemente considerando-as apenas bravatas. Mas coisas desse tipo não podem acabar bem. E, antes que alguém chame este colunista de cassandra, por prever desgraças, uma pequena lembrança: Cassandra, a belíssima filha de Príamo, rei de Tróia, resistiu às investidas amorosas do deus Apolo. Ele, por isso, lhe lançou uma maldição: ela seria uma grande profeta, e suas profecias seriam verdadeiras, mas ninguém nelas acreditaria.

 

O horror, o horror, o horror

Não há veículo de comunicação que seja favorável aos alucinados que enviam mensagens ameaçadoras. Mas tratam do assunto como coisa de doido, pura e simplesmente, e esquecem que mensagens de ódio bem divulgadas levaram ao linchamento de uma dona de casa, Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá (SP). Ela foi linchada sob a suspeita – no século 21! – de ser uma bruxa dedicada à magia negra. A população se escandalizou com isso. E, no entanto…

No entanto, o cerco a um acampamento do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, em Santa Catarina, que culminou com o apedrejamento e expulsão dos ocupantes acampados por moradores da região, que invadiram a área distribuindo pauladas, é louvado nas redes sociais como um bom exemplo. “Temos muito a aprender com os catarinenses”, diz uma nota. MST, PT, Lula, é tudo a mesma coisa para quem elogia a ação violenta dos moradores contra o acampamento. “Se o governo não atua, os moradores atuam. Que isso sirva de exemplo para as ações futuras.” E “parabéns ao povo catarinense pela atitude que tomou”.

Não houve mortos; ainda bem. Mas não foi por falta de esforço. Pedradas matam, pauladas matam; e, principalmente, a raiva faz com que quem entra na briga perca a racionalidade e a capacidade de perceber o que está fazendo. Os jornalistas têm a obrigação de separar o que é correto do que é apenas preferência política exacerbada; nós não podemos permitir que os meios de comunicação considerem correto tudo o que se faz contra os adversários e errado tudo o que é feito contra os aliados. Exacerbar os ânimos é ser cúmplice, se o pior acontecer.

 

A beleza ainda existe

Um evento para quem quer algo diferente dos ânimos em fúria, do trânsito horroroso, dos preços em alta, das maluquices dos amadores em política que querem transformar o mundo queimando ônibus e arregimentando exércitos virtuais no Facebook: a SP Estampa 2014, promovida a partir de terça-feira (13/5) pela galeria Gravura Brasileira (www.gravurabrasileira.com). A SP Estampa tem exposições, cursos, simpósio, workshops, com foco na arte gráfica. Reúne, na rua Dr. Franco da Rocha, 61, São Paulo, galerias, ateliês, artistas plásticos que trabalham com artes gráficas, instituições, escolas. É coisa boa, organizada por um especialista com trabalhos no Brasil, Estados Unidos e Europa, Eduardo Besen – sobrinho deste colunista. A programação completa do evento pode ser consultada em http://www.spestampa.com

 

Como…

Do noticiário online de uma rede de rádio noticiosa, ligada a um imenso grupo de comunicação:

** “Motoristas e cobradores de ônibus do Rio de Janeiro fazerão uma greve de 24 horas (…)”

Pior: esta greve não é a única. “Fazerão” outras.

 

…é…

Do noticiário online de um grande grupo de comunicação que, nos distantes tempos em que o Ricardo Kotscho tinha cabelos e o Renan Calheiros não os tinha, se orgulhava da correção de seus textos:

** “Os vapores inaladores por eles foram fonte de contaminação (…) Na sentença (…). ficou definhado que o dinheiro será destinado (…)”

Como será que a sentença definhou os prejuízos causados pelos vapores inaladores?

 

…mesmo?

De um importante portal noticioso:

** “Os dois mortos (…) foram levadas ao pronto-socorro (…) onde foram constatadas os óbitos”.

Louve-se a lógica do texto: se “mortos” é feminino, “óbitos” também é.

 

Assim mesmo!

De um jornal impresso, dos grandes, noticiando o caso do leão roubado no interior de São Paulo:

** “O animal pesa cerca de 300 quilos (…) e era alimentado diariamente com aproximadamente 5 quilos de carnepor dia”.

Não apenas come diariamente cinco quilos de carne por dia como também o faz todos os dias, no seu dia a dia cotidiano diário.

 

Frases

>> Do deputado Bernardo Santana, líder do PR na Câmara: ”Ao apoiar o ‘Volta, Lula!’, deixei claro que o partido apoiará Dilma até deixar de apoiar.”

>> Do jornalista Fred Navarro: “Linchamento no Guarujá, vaso atirado em torcedor no Recife e esquartejamento em Joinville é parte do treino para receber os turistas.”

>> Do novelista Aguinaldo Silva: “Quando a gente pensa que já viu tudo, eis aí: criaram um projeto para adaptar os livros de Machado de Assis à linguagem de Lula!”

>> Do jornalista Cláudio Tognolli: “Bonitinha a fórmula petista: julgar a si mesmo pelos seus ideais e julgar os outros pelos atos deles.”

 

E eu com isso?

A atriz está em seu quarto, dentro de sua casa, arrumando seu armário. E é surpreendida pela publicação de uma foto que a mostra nua (ou melhor, “aparentemente nua”). Pois aqui é o mundo mágico e cor-de-rosa em que se acredita que esta é uma foto de paparazzo, tirada sem que a modelo soubesse. Acredita-se também que uma estrela da TV ou do cinema “quase mostrou demais” por inadvertência. É um mundo de gente boa, cândida, que deve acreditar até em promessas de político em campanha. E viva o frufru!

** “Fernanda Souza tem fama de antipática no condomínio onde mora”

** “Cristiano Ronaldo troca chamegos com o filho”

** “Um dia após tirar colar cervical, Isis Valverde é flagrada na praia”

** “Hayden Panettiere escorrega em evento de gala e Rihanna dá risada”

** “Ivete Sangalo almoça com amigas em Salvador”

** “Lindsay Lohan curte a noite londrina”

** “Fiorella Matheis confessa: ‘Quero ter vários filhos’”

** “Com look todo rosa, Jennifer Lopez deixa as pernas à mostra”

** “Cláudia Raia passeia com os filhos em shopping do Rio”

** “Luciana Gimenez posta foto com cara de sono”

** “Taís Araújo e Murilo Benício se divertem ao gravar Geração Brasil

** “Sabrina Sato é clicada aparentemente nua arrumando o seu closet”

 

O grande título

Uma semana de grande abundância: temos títulos para todos os gostos. Por exemplo, os que retratam situações curiosas.

** “Em três acidentes, dois morrem e casal sem roupas fica ferido”

E os que mostram situações mais curiosas ainda:

** “Mulher depila área íntima após invadir casa”

Ou os que trazem conselhos sem os quais os jornalistas não conseguiriam viver, transmitidos por uma prestigiosa entidade especialmente ativa:

“Jornalistas em coberturas longas devem se lembrar de levar água e lanche”

E há um título notável pela precisão no uso das palavras:

** “Panorama da participação privada no saneamento”

Não poderia ser formulado de outra maneira.

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Carlos Brickmann é jornalista, diretor da Brickmann&Associados Comunicação