Estatuto das Eleições 2004. Sob este título de pompa proporcional à ‘missão’ que declaradamente acredita ter a desempenhar, O Globo publicou no dia seguinte ao início da campanha suas regras ‘editoriais e profissionais’ para a cobertura do processo eleitoral. Na apresentação, não faltaram referências às palavras de ordem de uma mistificação histórica: ‘Um trabalho jornalístico que requer equilíbrio, independência e pluralidade’; ‘prestar uma informação isenta e transparente’.
Mas o jornal que apregoa os postulados liberais da imprensa burguesa, entendida como ‘pilar da democracia’, não resiste à sua veia, digamos, ‘linha-dura’, e logo no lide da primeira matéria sobre as eleições municipais do Rio de Janeiro reclama ‘ordem’ e ‘disciplina’. Que essas palavras pertencentes a um léxico duvidoso dêem a largada na cobertura realizada pelo principal jornal da cidade é algo preocupante.
A matéria em questão consistia em criticar a crítica de três dos candidatos à prefeitura às recorrentes ações da Guarda Municipal contra os camelôs. A hipótese de ser a postura desses candidatos no primeiro dia de campanha mero ‘comércio ambulante de votos’ (título do texto) acabou servindo de mote para uma reação imediata d’O Globo ao menor esboço de uma forma não-policialiesca de se tratar a questão. O jornal ‘informa’ a seus leitores, sob a benção do Estatuto das Eleições publicado na mesma edição, que o olhar sobre o comércio ambulante não-regularizado só pode ser um olhar repressivo.
Candidato inconveniente
Uma jóia do pensamento único! O estatuto prevê que, na falta de vôos comerciais, o jornal reembolsará o candidato que carregar um repórter em seu jatinho. Diante dessa minuciosa preocupação estatutária, talvez fosse o caso também de coibir qualquer tentativa ‘jornalística’ de direcionar políticas públicas de acordo com convicções editoriais punitivas. Ao menos em tempos eleitorais, em nome da ‘independência’ e da ‘informação isenta’…
Mas esta afobação por domesticar e cercear parece não ser o único pecado d’O Globo contra seu próprio estatuto. A série de matérias que vem ‘fritando’ Marcelo Crivella ultrapassa as constantes e legítimas referências irônicas à tentativa do bispo de santificar sua própria candidatura e vai além do questionamento do valor modesto de sua declaração de bens.
Em uma semana, o jornal requentou um antigo processo contra Crivella, deturpou uma declaração sua e a transformou num insulto aos idosos, e não apurou sua alegação de que teria vendido há 10 anos duas emissoras de televisão que ainda constam como suas por suposta morosidade do Ministério das Comunicações. Tudo com destaque de capa. Falta ‘equilíbrio’ e ‘transparência’ nesta ânsia por descartar do segundo turno um candidato inconveniente aos interesses da empresa.
O morto está vivo
Por mais que a figura do bispo Crivella cause arrepios não só à Globo, se esses métodos de fritura pegam terminaremos nos autos de fé dos tribunais do Santo Ofício.
Mas nada surpreende mais nesta cobertura d’O Globo das eleições no Rio de Janeiro do que o absoluto descaso que o jornal vem demonstrando em relação à candidatura do PDT ao governo carioca. O PDT, um partido desde sua fundação umbilicalmente ligado à vida política da cidade. Nada justifica o tratamento dispensado a Nilo Batista, ex-governador do estado, cuja candidatura é francamente relegada à insignificância sob o pretexto de não ter aparecido na pesquisa do Ibope que vem servindo de critério jornalístico para o jornal e a TV do grupo Globo. Tendo em vista que o nome de Nilo Batista só foi confirmado em convenção do PDT depois de realizada a pesquisa, o mínimo que se esperava é que o já duvidoso ‘critério Ibope’ fosse ‘flexibilizado’.
A atenção à candidatura de Nilo Batista tem sido tão ‘comedida’, no dizer do próprio Nilo em ‘entrevista de seis minutos’ no RJTV, que na principal coluna de política do próprio jornal O Globo, em nota descrevendo a chamada divisão histórica da esquerda na cidade, o colunista relaciona apenas Jandira Feghali e Jorge Bittar. Como é possível deixar de fora da ‘esquerda’ a candidatura que, afinal de contas, é a candidatura que desejava o próprio Brizola?
As Organizações Globo, que negaram até a morte (do Brizola) a fraude na qual tomaram parte nas eleições de 1982, apressam-se em enterrar o PDT. Alguém precisa acrescentar naquele Estatuto das Eleições um lembrete dizendo que o morto está vivo, ainda que em vida jamais vai mandar bater em camelô.
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Jornalista