A cidade pesqueira de Sayada, na Tunísia, no Mediterrâneo, é o local improvável de um experimento para refazer a internet global. Mas os moradores daqui têm um surpreendente nível de conhecimento digital e lembranças bem nítidas de como a internet pode ser mal empregada.
Um grupo de acadêmicos e entusiastas da computação participantes da revolta de 2011 que derrubou a ditadura na Tunísia ajudou sua cidade a se tornar um caso de teste para uma alternativa: uma rede local fisicamente separada, feita de antenas habilmente programadas e espalhadas pelos telhados.
O Departamento de Estado americano forneceu US$ 2,8 milhões (R$ 6,19 milhões) a uma equipe de fanáticos por software, ativistas digitais e hackers americanos que desenvolveram o sistema, chamado de rede em malha, de modo a permitir que dissidentes do exterior se comuniquem com mais liberdade e segurança do que na internet aberta.
Um alvo que certamente vai provocar debate é Cuba: a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) prometeu US$ 4,3 milhões (R$ 9,5 milhões) para criar redes em malha por lá.
Outros projetos financiados pelo Departamento de Estado mostraram que a malha poderia servir a moradores em bairros pobres de Detroit e foram a tábua de salvação digital em parte do Brooklyn durante o furacão Sandy. Mas, assim como no exterior, os americanos cada vez mais citam o temor da espionagem governamental ao explicar o apelo das redes em malha.
A formação da rede em malha
Desde que o projeto da malha surgiu, em 2011, seu objetivo original – contornar os espiões do governo – virou um assunto desconfortável para autoridades americanas que apoiavam o projeto.
Isso porque a Agência de Segurança Nacional americana (NSA), segundo documentos vazados por Edward Snowden, mostrou ser uma espiã mundial na internet. Sascha Meinrath, da New America Foundation, de Washington, grupo que vem desenvolvendo o sistema em malha, disse que recebeu “centenas de pedidos de consulta dos EUA inteiros” após as denúncias de Snowden.
“As pessoas estão nos perguntando como proteger sua privacidade”, disse Meinrath. Os 14 mil habitantes de Sayada estão mais focados em usar a malha para a gestão local do que em derrotar a espionagem, disse Nizar Kerkeni, professor da Universidade de Monastir.
A rede cobre áreas que incluem a rua principal, o mercado e a prefeitura, e os usuários têm acesso a um servidor local com a Wikipedia em francês e árabe, mapas das ruas da cidade, 2.500 livros gratuitos em francês e um aplicativo para bate-papo seguro.
O software em malha, chamado Commotion, é uma grande reformulação de sistemas que são executados há anos por especialistas em toda a Europa, disse Meinrath. A ideia, afirmou ele, era tornar a tecnologia acessível ao público (o Commotion está disponível para download gratuitamente na página do projeto na internet).
A internet aberta é difícil de ser operada em segurança, em parte porque funciona ao mesmo tempo como um sistema de encaminhamento de dados e uma espécie de lista telefônica eletrônica gigante.
A ação mais simples – digamos, enviar um e-mail – envolve a comunicação com múltiplos servidores e roteadores ao longo de numerosos caminhos. A malha permite que usuários em uma área local criem uma rede que seja fisicamente diferente da internet. Roteadores sem fio são colocados em telhados e sacadas.
Desde que cada roteador esteja numa posição visível para outros roteadores e o software Commotion tenha sido configurado, é formada uma rede em malha, segundo Ryan Gerety, da fundação.
Os mesmos roteadores podem fornecer acesso a qualquer aparelho sem fio que esteja no seu raio de alcance. A simplicidade do sistema parece inegável: na Tunísia, Gerety trabalhou com Kerkeni para criar oficinas com cerca de 50 moradores locais. Ao longo de dois fins de semana, em dezembro, 13 roteadores e uma malha funcional foram postos em operação.
Mais parecido com a internet do que a internet
Há alguns reveses, já que a comunicação pode ficar lenta quando os sinais dão “saltos” de um roteador para outro, levando alguns especialistas a questionarem o quanto a malha poderia crescer.
Outros argumentam que redes em malha na Europa, incluindo algumas em Berlim, Viena e Barcelona, têm milhares de roteadores, embora eles exijam habilidades altamente técnicas.
Muitas dessas redes foram construídas para compensar uma cobertura irregular ou inexistente. Um projeto semelhante está em prática em Detroit, onde o Departamento de Estado financiou experimentos com redes em malha como uma saída de baixo custo para o acesso à internet sem fio.
Uri House, que conduziu a criação de uma malha em seu problemático bairro, disse: “O acesso à informação muda a sua vida.” A resiliência poderia se tornar o principal argumento para as redes em malha, com a privacidade como bônus, disse Jonathan Zittrain, professor de Direito e Ciência da Computação na Universidade Harvard. Isso é semelhante à internet original, afirmou ele. “Isso torna a malha mais parecida com a internet do que a internet”, disse.
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Carlotta Gall e James Glanz, doNew York Times