Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo com fronteiras

A cobertura de ciência, assim como qualquer outra especialidade, é pautada pelos mesmos princípios e técnicas que caracterizam a atividade jornalística como um todo: isenção, objetividade, clareza e atualidade. Embora muitos destes conceitos ou “metas” sejam discutíveis, a prática da profissão mantém, por meio da linguagem e de técnicas bem definidas, uma série de características que a diferenciam de outros ofícios. Isso quer dizer que tanto o jornalismo econômico quanto o político e o policial são, para todos os efeitos, jornalismo. Cada um tem o seu próprio estilo e seus jargões, mas todas estas especialidades têm que lidar com a pressão pelo furo de reportagem e com prazos cada vez mais exíguos.

Matéria recente publicada na no jornal Folha de S.Paulo relata as dificuldades que alunos do programa Ciência sem Fronteiras enfrentaram no Canadá. A matéria menciona o caso dos estudantes Luana Monteiro Leite, de 27 anos, e Rondinelly Guimarães, de 23. Ambos foram selecionados pelo programa para cursar um período de sua graduação em uma universidade de Portugal, mas o edital foi cancelado e os jovens foram transferidos para o Canadá, onde deveriam continuar seus estudos. Por não atingir um nível mínimo de proficiência no inglês, retornaram ao Brasil.

Após passar por uma reforma gráfica que começou em 2000, quando o grupo Folha “pretendeu organizar de maneira mais nítida a hierarquia das notícias”, a publicação também incorporou mudanças editoriais, como a instituição de textos curtos. A matéria “Alunos do Ciência sem Fronteiras foram orientados a racionar alimentos”, da qual trata esta análise, é um exemplo.

Faltou cavar mais

Que o perfil de quem lê notícias na internet é outro, isso não é novidade. Nem que este mesmo leitor vê a informação como imagem, fixando-se em elementos-chave, como aponta a especialista em Políticas da Comunicação Organizacional Angèle Murad. O fato é que a plataforma ou o suporte no qual a informação é divulgada não pode ser motivo de desculpa para a superficialidade ou parcialidade da notícia. Retrancas, hiperlinks, infográficos e vídeos são alguns dos recursos que podem ser utilizados para aprofundar uma discussão na plataforma digital.

Mas não foi o que aconteceu nesta matéria da Folha. O texto dá ênfase às dificuldades que os alunos enfrentaram, mas não explica o processo de seleção do programa, tampouco os critérios de admissão utilizados pelas universidades estrangeiras envolvidas na parceria com o governo brasileiro. Num determinado trecho, a matéria diz: “Documentos obtidos pela Folha mostram dois resultados dos testes realizados em janeiro, uma aluna que obteve a nota 56 no teste TOEFL IBT foi convocada pela Capes para retornar, enquanto um aluno que obteve a nota 45 no mesmo teste recebeu o aceite da Universidade de Toronto”. Embora aponte uma aparente contradição nos critérios de seleção, o repórter não diz se procurou ou não a referida universidade e leva o leitor a acreditar que este tipo de contradição pode ser recorrente.

Também não há retrancas, matérias relacionadas ou qualquer outra notícia que trate o programa a partir de outro/outra(s) perspectiva(s). Uma busca com as palavras-chave “ciência sem fronteiras” mostra que, dos 25 resultados que aparecem na primeira página do resultado à pesquisa, boa parte aborda a iniciativa do governo federal por um viés político. Será que não há gente boa e interessante para entrevistar na Capes ou na academia? Será que não há outras histórias por trás desta notícia? Faltam, de fato. E se, de fato, faltam critérios para selecionar os alunos? E se a comparação da Folha foi apenas uma coincidência? Faltou cavar mais. Ir além da superfície.

Não estou dizendo que esta a matéria está ruim ou pequena. Apenas rasa.

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Leonardo Siqueira é jornalista, especialista em comunicação empresarial e pós-graduando em Jornalismo Científico pela Unicamp