Com a publicação da Lei Federal nº 12.965, de 2014, o Marco Civil da Internet se tornou realidade. Com isso, as relações e negócios jurídicos na rede mundial de computadores ganham uma lei específica que afasta a aplicação direta de normas como o Código Civil que tratavam da matéria até então.
O Marco Civil traz relevantes temas práticos ao uso seguro e igualitário da internet como a neutralidade, armazenamento de dados de acesso e conexão que facilitarão a identificação de autores de infrações, servindo inclusive como relevante matéria probatória. Os princípios fixados na nova lei, especialmente nos art. 2º, 3º e 4º, mereceram a maior atenção das manifestações sobre a matéria.
No entanto, o discurso igualitário e combativo à censura vem funcionando como uma cortina de fumaça ao debate de outros temas relevantes, modificados pela nova lei, dentre eles, o novo paradigma da responsabilidade civil do provedor decorrente de conteúdo gerado por terceiros.
Até a publicação do Marco, os tribunais nacionais fixaram jurisprudência no sentido de que os provedores deveriam indenizar o ofendido sempre que, cientes da violação de direitos, deixavam de adotar medidas para sua interrupção.
Segundo o modelo proposto pelo Art. 19 e parágrafos da legislação, a responsabilidade sobre o ato lesivo somente nascerá quando, e se o titular do direito violado ingressar com demanda judicial e, obtida decisão favorável para retirada do conteúdo contra si, o provedor deixar de observar a ordem judicial. Ou seja, o provedor deverá descumprir uma ordem judicial, fora essa hipótese, não terá qualquer responsabilidade sobre conteúdo lesivo veiculado por seus serviços, cuja autoria não seja sua.
A nova regra atinge a veiculação de conteúdo lesivo contra diversas modalidades de direitos privados, como é a propriedade intelectual, ressalvados os casos de atentado aos direitos autorais e os que lhe são conexos (arts. 19 §2º e 31), bem como as hipóteses de ofensa aos direitos da personalidade, quando ultrajados por meio da publicação de conteúdo sexualmente explícito sem o consentimento do ofendido (art. 21).
Nesses casos, segue prevalecendo a regra da ciência e omissão do provedor na adoção de medidas eficazes para cessar a veiculação do conteúdo ilícito, para caracterização de sua responsabilidade civil sobre o ato.
Interesse social e empresarial
O modelo anterior ao Marco Civil, decorrente da apreciação caso a caso perante os tribunais, ainda não era o ideal, e abria margem à atribuição excessiva de responsabilidade ao provedor. Isso porque, a mera manutenção de conteúdo denunciado por meio de notificação não deveria, por si só, constituir hipótese de omissão capaz de gerar o dever de indenizar. Ao provedor, era desproporcional atribuir a obrigação de analisar e julgar todas as denúncias que lhe chegavam para, com base nessas, adotar ou não as medidas de retirada.
Assim, se por um lado, se o provedor adotasse postura conservadora, retirando do ar todo e qualquer conteúdo denunciado, limitar-se-ia a liberdade de expressão na rede, por outro lado, a recusa na cessação da veiculação de determinado conteúdo trazia o risco iminente de responsabilização cível, sem analise do órgão judicial sobre a plausibilidade da denúncia.
Ocorre que, a nova lei, ao tentar equalizar a situação existente, criou para os provedores uma espécie de inimputabilidade civil: carta branca para se beneficiarem plenamente de suas atividades comerciais, como a venda de espaço publicitário e acessos as suas páginas, sem qualquer risco pecuniário relacionado. Para tanto, basta o simples e correto ato de, se condenados em ação judicial, atenderem a ordem, ou seja, nada mais óbvio.
Um dos resultados possíveis dessa alteração será o desestímulo dos provedores em resolver questões de conteúdo lesivo pela via extrajudicial e, como consequência, um excesso de judicialização decorrente de litígio na internet, na contramão da tendência internacional de desjudicialização de controvérsias.
O Marco Civil é falho nesse aspecto e poderia, por exemplo, ter adotado o norte ditado pelo Art. 14 da Diretiva 2000/31 da Comunidade Europeia, que fixa a responsabilidade do provedor a partir do momento em que, ciente do conteúdo lesivo, deixa de adotar medidas eficazes para cessação da violação de direitos.
Nessa hipótese, aos titulares de direitos violados ficaria garantida uma forma de pressão à solução extrajudicial, bem como o direito de haver indenização, quando o provedor se omitir a enfrentar de forma eficaz sua denúncia. Aos provedores fica aberta a possibilidade de discussão casuística, em meio ao devido processo legal, com margem a alegação, por exemplo, de que determinada denúncia foi analisada, que medidas de controle foram tomadas, mas que o conteúdo não foi retirado, uma vez que não se percebia, sem uma larga instrução probatória e contraditório, veracidade nas alegações do denunciante.
O advento do Marco Civil cria óbices à cessação da violação de direitos, como a vulgarização de ativos intangíveis ou ataques à honra e à moral. Há na nova lei um viés protecionista do setor da internet em detrimento do interesse social e empresarial, no sentido amplo. A nova lei foi promovida como forma de defesa ao uso equilibrado da internet, no entanto, há falhas que devem vir à tona quando de sua efetiva aplicação perante os tribunais.
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Diego Osegueda é advogado do BM&A – Barbosa, Müssnich & Aragão. Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações