Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para não esquecer Watergate

Na história da imprensa, que é a história das relações conflituosas entre os jornalistas e o poder, dois grandes eventos se projetam para o alto, como picos de uma cordilheira. O primeiro deles, mais ao longe, é uma manchete – uma única manchete, intensa e instantânea, como um tiro. O segundo está mais próximo e parece maior. É uma cobertura jornalística inteira, que se prolongou por um período de mais de dois anos. O primeiro cume se eleva pela força da opinião; o segundo, pelo vigor da informação. O primeiro é o “J’accuse…!”, do escritor francês Émile Zola; o segundo, as reportagens do jornal Washington Post sobre o caso Watergate.

“J’accuse…!” (“Eu acuso…!”), dizia a manchete em letras garrafais no alto da primeira página do L’Aurore de 13 de janeiro de 1898. Era o título da carta aberta de Zola ao presidente da França, Félix Faure, acusando o governo de fazer parte da conspiração que levou o capitão de origem judaica Alfred Dreyfus a ser condenado injustamente à prisão perpétua, sob suspeita – forjada – de ser espião a soldo dos alemães. Em poucas horas, os 300 mil exemplares do jornal foram vendidos. O movimento lançado por Zola não apenas ajudou a libertar Dreyfus como escancarou o antissemitismo que movia os perseguidores do capitão. Por fim, pôs em cena a figura que marcaria com linhas fundas o século XX: aquela do intelectual moderno, o homem de letras que se ergue de sua escrivaninha e deixa a biblioteca para intervir diretamente na esfera pública, por meio da imprensa.

O caso Watergate é o segundo evento estruturante do entendimento que temos hoje da instituição imprensa. Diferentemente da manchete e da carta de Zola, que, quando veiculadas, demonstraram a força das ideias e da visão subjetiva, assim como a potência da opinião livre e justa na imprensa independente, a cobertura jornalística do escândalo de Watergate comprovou que a apuração objetiva dos fatos, quando fere o poder, pode ter efeitos ainda mais devastadores. Seu vigor não vem da reflexão audaciosa e da escrita penetrante, mas do esforço físico, braçal. Nesse caso, a estrela não é o pensador ou o escritor, e sim o repórter incansável, que persegue informações em jornadas exaustivas, muitas vezes insalubres: o operário da notícia.

Na madrugada de 17 de junho de 1972 , cinco arrombadores foram presos dentro do Comitê Nacional Democrata, no edifício Watergate, em Washington. Ao serem flagrados no interior do escritório arrombado, os invasores carregavam equipamentos de escuta. A cena não deixava dúvida: eles tinham ido até lá para grampear as conversas de integrantes do Partido Democrata. Mas por quê? A mando de quem? Os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post, passaram a investigar o acontecimento e desvelaram um submundo que enojou a sociedade civil americana: um esquema de espionagens e sabotagens que se subordinava à cúpula do Comitê de Reeleição do Presidente Richard Nixon, do Partido Republicano. A cobertura se estendeu por mais de dois anos, em um período de confronto aberto entre o jornal e a própria Casa Branca. O trabalho da dupla de repórteres culminou com a derrocada de todos os homens do presidente, incluindo o próprio mandatário: em 8 de agosto de 1974, Nixon anunciou sua renúncia.

Lançado nos Estados Unidos em junho de 1974 – dois meses antes de Nixon jogar a toalha –, o livro não teria como narrar os lances finais da longa batalha, mas resume quase integralmente a epopeia que fez da redação do Post o centro nervoso da política americana naqueles dois anos. (Em outra obra, The Final Days, lançada em 1976 pela mesma Simon & Schuster que publicou este All the President’s Men, os dois jornalistas relataram minuciosamente a queda de Nixon.)

Todos os homens do presidente nos lembra de que só há democracia em um país quando existe a possibilidade institucional de dois jovens repórteres (em 1972, Woodward tinha 29 anos e Bernstein, 28) levarem adiante uma apuração que pode acarretar a queda do presidente da República. Claro que não foi a dupla de jornalistas, sozinha, que fez Nixon apear da Casa Branca. Woodward e Bernstein atuaram o tempo todo sob a liderança de Ben Bradlee, o editor-executivo do Post, e de outros editores. Integravam uma grande equipe, bastante tarimbada, que soube orientá-los muito bem. Quem derrubou Nixon, portanto, não foram apenas os dois repórteres. Tampouco foi a redação do Post. A renúncia resultou da indignação da sociedade civil e da mobilização da Justiça e do Congresso, em um processo amplo e sólido que, este sim, determinou, mais de dois anos depois da primeira reportagem, o fim do governo Nixon.

Isso é liberdade de imprensa. Isso é democracia. Assim como autoriza um escritor consagrado como Zola a desmascarar o governante, o regime democrático garante a dois jovens desconhecidos o direito de vasculhar os segredos do partido político dominante e dos mais altos escalões do Estado.

Ganhadora do Prêmio Pulitzer (categoria Public Service) em 1973, a cobertura do Washington Post redefiniu o lugar da persona do jornalista no pós-guerra. A imagem pública do profissional de imprensa saiu do escândalo de Watergate inteiramente redefinida, como se um novo marco fundador viesse reordenar o universo do jornalismo, ampliando a esfera de ação de seus protagonistas. Desde então, um chefe do Executivo que mira os olhos de um simples repórter sabe que pode estar diante de alguém que poderá sentenciá-lo à morte política. A cobertura de Watergate pelo Washington Post mudou o status do repórter e revigorou a força civil dos jornais. As narrativas que ficaram dessa saga heroica (a começar por este livro) fazem dela um episódio que tem o peso, podemos dizer, de um “mito refundador”. Tanto é um mito que, mais do que lições insubstituíveis, deixou cacoetes, alguns meio folclóricos, que até hoje são imitados por editores dos países mais variados.

Primeiro cacoete: a mania do editor-executivo Ben Bradlee de se sentar como quem quer se espreguiçar, pousando os pés sobre a mesa de trabalho (a dele e a dos subordinados), virou um signo de mando jornalístico. O filme Todos os homens do presidente, de 1976, baseado no livro, sob a direção de Alan J. Pakula, ajudou a difundir essa mística gestual. Jason Robards como Ben Bradlee ganhou com justiça o Oscar de melhor ator coadjuvante: ninguém descansava as pernas sobre a escrivaninha alheia com tanta majestade. Outro cacoete: o modo de Robert Redford (como Woodward) segurar com o ombro o gancho do velho telefone, liberando a mão que se dedicava a rabiscar nomes, números, desenhos toscos e declarações das fontes em folhas de papel, encantava (e ainda encanta) os focas e os(as) chefes dos focas.

No filme,a redação de um jornal tem ares de um ambiente que mescla sabedoria e mundanidade (e aqui temos o terceiro cacoete, este coletivo). Os editores discorrem sobre os mais graves destinos da nação assim como se divertem com piadas de gosto duvidoso, palavrões e ultrajes sortidos. Sintomaticamente, a poderosa redação do Post deu à fonte mais decisiva e misteriosa de toda a cobertura um apelido escancaradamente pornográfico. O informante secreto de Bob Woodward, um tipo retraído que só aceitava conversar com o repórter em estacionamentos vazios, mal iluminados, e sempre depois da meia-noite, definia a si próprio como um observador privilegiado do “deep background” (do “bastidor profundo”). Quando Woodward levou aos seus chefes aquela conversa toda enrolada de “deep background”, o secretário de Redação, Howard Simons,batizou a fonte de Deep Throat (Garganta Profunda), nome de um filme pornô. Garganta profunda, lançado naquele mesmo ano de 1972, viria a ser o mais famoso título de sexo explícito de todos os tempos. Pois foi com esse apelido de baixo calão que a fonte mais enigmática de Watergate entrou para a história.

Um segredo de mais de trinta anos

Vale registrar que o enigma do informante secretíssimo permaneceu indevassável por mais de trinta anos. Ninguém o abriu. Durante esse período, diversas especulações apareceram – nenhuma delas, por sinal, muito favorável à credibilidade de Woodward. Uns diziam que o repórter, no livro, havia misturado diversos informantes em um único personagem fictício, com o propósito de dificultar qualquer identificação. Outros supunham coisas ainda menos abonadoras. O próprio Bradlee, em uma entrevista transcrita no capítulo “Doubt (Part One)” do livro Yours in Truth: a Personal Portrait of Ben Bradlee, de Jeff Himmelman (Random House, 2012), explicou que, no começo, achava meio esquisita aquela história de encontros noturnos em estacionamentos. Só ficou mais sossegado quando, após a renúncia de Nixon, Woodward lhe contou quem era Garganta Profunda. Bradlee preferia não acreditar de cara em tudo o que seus repórteres diziam. Era prudente nesse aspecto. Sua confiança não vinha assim, de uma só vez. Era dada aos poucos. Mas, quando vinha, aí, sim, era para valer. Era leal. Bradlee guardou o segredo de Woodward com a disciplina de um templário.

A identidade da fonte só foi desvelada em maio de 2005, quando uma reportagem da revista Vanity Fair, assinada pelo advogado John O’Connor, pôs fim às dúvidas mais sinceras e sepultou as teorias mais extravagantes. Garganta Profunda era William Mark Felt, que, na época do escândalo, era nada menos que o segundo homem do FBI. Quando morreu, em 2009, aos 95 anos, Felt ganhou obituários no mundo inteiro. Elogiosos. Uma pergunta, porém, permaneceu sem resposta. Qual teria sido a motivação dele para informar Woodward sobre os bastidores políticos? Seria um burocrata ressentido? Um traidor? Um patriota?

A resposta definitiva não existe, mas podemos nos contentar com um pouco de cada coisa. Quando começou a abastecer o Post de informações incendiárias, Felt acabara de sofrer um revés. Até meses antes, era praticamente o vice do lendário e temido xerife superautoritário do FBI, J. Edgar Hoover, de quem era admirador declarado. Com a morte de Hoover, em maio de 1972, esperava ser guindado ao comando, porém foi preterido por Nixon, que nomeou para o posto um de seus homens de confiança, L. Patrick Gray III (personagem deste livro, naturalmente). Felt considerava que a decisão de Nixon tinha sido péssima para o FBI e para os Estados Unidos. E mais: na opinião dele, a Casa Branca vinha montando uma rede de espionagem ilegal e uma máquina de subornos em série que tomariam conta de todas as instâncias de poder no país. “Manipulação total: era esse o objetivo”, disse ele a Woodward, “com todo mundo comendo de vez em quando na mão deles. Até a imprensa” (p. 165). As suspeitas tinham fundamento. No entanto, se Felt agiu por vingança ou por civismo, jamais saberemos.

Curso de porte e postura

Na relação entre Woodward e Garganta Profunda temos o estereótipo da fonte temperamental e do repórter aplicado. Apesar de arredio (não aceita ser chamado ao telefone), Garganta Profunda é colaborativo (se convocado com discrição, acaba indo ao encontro do jornalista). É maníaco no que se refere a segurança (exige que Woodward pegue pelo menos dois táxis, um para cada direção, antes de chegar ao encontro marcado), mas topa correr riscos (talvez pelo prazer perverso de tornar público um terrível segredo do inimigo). E se esmera em caprichos cenográficos. Por exemplo: pede que Woodward deixe uma bandeirinha vermelha na varanda do apartamento quando quer um encontro.

Um repórter que investiga histórias complexas, em democracias complexas, acaba levando uma vida também complexa. Ele depende de relações de confiança nas duas pontas. De um lado, a confiança das fontes ao informar e receber informações. De outro, depende do apoio que só seus chefes, os editores, podem lhe dar. Sim, há diferenças entre uns e outros. Enquanto a convivência com os editores segue uma regulação formal, por se tratar de uma relação de trabalho juridicamente ordenada e com clara hierarquia, os vínculos com as fontes tendem a ser voláteis. Podem se desfazer sem mais nem menos, como um vulto que some nas sombras da noite. O repórter se move no escuro. Só assim poderá seguir o fio da meada. A propósito, os encontros de Woodward com seu informante na amplidão de um estacionamento sem luz, no meio da madrugada, funcionam como perfeita metáfora dos contatos ásperos e problemáticos entre a instituição da imprensa e os subterrâneos do poder.

O repórter não é como o intelectual, que tem (ou imagina ter) respostas. Woodward e Bernstein não são Émile Zola. Tudo o que eles têm na cabeça são perguntas. Se o jornalismo de opinião tenta apontar rumos, a reportagem levanta interrogações. E é assim, fazendo perguntas a gente esquiva, que os dois desarmam a grande farsa dos homens de Nixon: primeiro, constatam que os arrombadores do Comitê Democrata no edifício Watergate foram pagos com um dinheiro que deveria estar no caixa da campanha da reeleição; depois descobrem outras atividades clandestinas encomendadas pelo mesmo pessoal; em seguida, passam a localizar elos entre “os homens do presidente” e os porões da “arapongagem”. A partir daí, há um desmoronamento atrás do outro.

O caminho, no entanto, é sinuoso, tortuoso, sofrido. É possível que o leitor de Todos os homens do presidente experimente de início um pouco de deso­rientação diante de tantos nomes, cargos, conversas cruzadas, diálogos interrompidos. É possível que, às vezes, confunda um personagem com outro ou que, de repente, descubra que há um fio de continuidade entre enunciados vindos de bocas diferentes, como se os personagens do livro tecessem, de forma involuntária, uma rede estranhamente lógica. Quando afinal parece que tudo será elucidado, eis que, de novo, as coisas se embaralham ainda mais, e os fios de sentido se rompem. Foi assim também que os repórteres se sentiram, tendo que montar um quebra-cabeça em meio a pistas ilusórias e fontes vacilantes. Como buscar o fio da verdade (ou da verdade factual, que seja) em meio a um oceano de incertezas? Haveria um método para alcançar esse objetivo? Em 1974, Todos os homens do presidente lançou bases para a consolidação do que podemos chamar de “método de apuração”, reunindo procedimentos que têm protocolos e propósitos próprios. É bem verdade que, hoje, todos esses procedimentos parecerão óbvios, mas, na época de Watergate, embora já fossem conhecidos e praticados por vários profissionais, ainda não eram tão difundidos. O que estamos chamando de método pode ser resumido em torno de sete pequenas (grandes) lições.

Princípios e parâmetros

1.Checar todas as informações com pelo menos duas fontes de universos diferentes, que representem interesses diferentes.

Carl Bernstein e Bob Woodward erraram feio em algumas passagens da apuração. Foi assim quando asseguraram que o tesoureiro do Comitê de Reeleição Republicano, Hugh Sloan, tinha denunciado à Justiça o chefe de gabinete da Casa Branca, H. R. Haldeman. No dia seguinte, Sloan e seu advogado negaram publicamente a informação, deflagrando o que pode ter sido a pior crise da cobertura. Os repórteres erraram porque não checaram direito os dados antes de publicar a reportagem. Nesses momentos, o leitor pode ter a sensação de que os dois negligenciaram a verificação necessária e abusaram daquilo que o jornalista Marcelo Leite, quando ombudsman da Folha de S.Paulo, definiu como “offismo” (em artigo publicado no jornal em 31 de dezembro de 1995), o abuso da referência a fontes anônimas. Em certas ocasiões, barganhavam demais com suas fontes. Para conseguirem as comprovações que buscavam, contavam o que sabiam na esperança de ser “remunerados” com o que não sabiam. Essa conduta é aceitável? O tempo todo, eles se viram diante deste dilema: “Quando era justificável que um repórter entregasse informações a uma comissão de inquérito? Ou desse conselhos a um senador?” (p. 292). O livro ensina também que é preciso ir além das fontes. É preciso buscar documentos, provas materiais.

2.Consultar documentos e provas materiais, com assiduidade e obstinação.

Documentos trazem precisão (numérica, cronológica, geográfica etc.) e evitam que os repórteres investigativos fiquem reféns de suas fontes humanas. Os autores de Todos os homens do presidente anotam que “[Harry] Rosenfeld [editor de Cidades do Post] sempre se sentia melhor ao saber que em algum lugar, por mais remoto que fosse, havia algum papel capaz de corroborar uma matéria” (p. 117). Rosenfeld estava certo, mas, rigorosamente, não basta saber que o papel que comprova a reportagem está “em algum lugar”. O ideal é que o documento esteja em poder do jornalista.

3.Conduzir com autonomia as investigações que embasam as reportagens.

Woodward e Bernstein investigaram o caso por conta própria. Eles não eram meros receptadores de dados vindos de investigações conduzidas por autoridades ou agentes estranhos à redação. Por isso, a chance de que eles fossem usados por interesses alheios era menor.

4.Assegurar-se de que a reportagem tem por objetivo apontar práticas ilegítimas do poder, não a intimidade ou a privacidade de pessoas comuns.

O Post esbarrou, algumas vezes, em informações que poderiam expor a vida íntima de pessoas comuns. Não cedeu à tentação da futrica. Deu prioridade ao genuíno interesse público.

5.Nunca se valer de condutas que o Estado Democrático de Direito considere ilícitas.

O jornalismo é uma atividade lícita que emprega meios lícitos para apurar, editar e publicar notícias. Certa vez, os dois repórteres assediaram jurados do caso Watergate. O juiz John Sirica ficou sabendo. Mandou intimar a dupla a comparecer ao tribunal, com outros jornalistas. Na sessão, passou uma descompostura geral. Não condenou ninguém, mas deixou o alerta. Repórteres conversam com fontes, leem documentos, observam a cena, fazem inferências e vão checá-las; não devem, não podem e não precisam invadir domicílios, instalar escutas ilegais, mentir para as fontes ou induzir as pessoas a praticar crimes ou delitos.

6.Montar e organizar bancos de dados.

Ao longo da cobertura, Woodward e Bernstein foram acumulando documentos e relatórios detalhados que eles mesmos escreviam, com a finalidade de alimentar o banco de dados que criaram. A elaboração de relatórios internos já era uma prática nas boas casas de imprensa. A partir de Todos os homens do presidente, essa prática adquiriu maior sentido.

7.Reescrever, reescrever, reescrever, quantas vezes for necessário.

No Washington Post dos anos 1970, havia redatores para reescrever o que os repórteres produziam (a célebre função do copidesque [do inglês copydesk]). Foi, aliás, por intermédio de um desses redatores que Carl Bernstein se aproximou da apuração de Bob Woodward. Bernstein foi à mesa do redator, apanhou as laudas de Woodward e passou a reescrever a matéria. Woodward resolveu conferir o que o outro estava fazendo e reconheceu que o texto tinha melhorado. Começaram a trabalhar em dupla.

A partir daí, os editores e o próprio Bradlee entraram no processo. O hábito de reescrever caiu em desuso, como se fosse um capricho demorado, um desperdício de energia. É pena. Muitas vezes, ao melhorar o texto final, editores e repórteres descobrem lacunas de apuração que, sanadas, trazem mais fundamentação à história.

As bases do jornalismo investigativo

Com a disseminação desses parâmetros éticos e técnicos, não são poucos os estudiosos da imprensa que veem na cobertura do escândalo de Watergate um momento que marcou o fortalecimento do chamado jornalismo investigativo. Isso não quer dizer que não houvesse, já naquele tempo, repórteres que se qualificavam como jornalistas investigativos. Um deles era Seymour Hersh, que aparece em Todos os homens do presidente como um destacado repórter do New York Times e uma estrela dessa atividade. Já eram bem conhecidos e praticados os princípios de que 1) o jornalismo investigativo existe para desvendar o que o poder quer esconder e 2) o próprio repórter deve conduzir as investigações do caso que está apurando.

Quando o Comitê Democrata sofreu o aloprado arrombamento em Watergate, o jornalista americano Philip Meyer também já tinha escrito seu clássico Precision Journalism (elaborado entre 1969 e 1970), uma espécie de bíblia para a maioria das associações de jornalistas investigativos. Naqueles anos, estava na moda o new journalism, que buscava dotar de elementos literários a escrita da reportagem, como fizeram Truman Capote, Norman Mailer e Gay Talese em best-sellers não ficcionais de grande impacto. Meyer preconizava que, além de recorrer à literatura, o jornalismo deveria beber nas ciências sociais, na estatística e na análise acurada de documentos. Em seguida, o advento do computador, que fez deslanchar a RAC (reportagem com o auxílio de computador), e mais tarde o aparecimento da internet deram mais densidade, profundidade e alcance ao trabalho de repórteres investigativos, conferindo ainda mais pertinência aos procedimentos postulados por Meyer.

Portanto, em 1972, o jornalismo de precisão (Meyer) e os princípios do jornalismo investigativo – seja o de fiscalização do poder, seja o de apuração autônoma – já eram bem conhecidos. O que Watergate fez foi demonstrar que a investigação jornalística é parte do equilíbrio entre os poderes na democracia. E fez isso com tanta intensidade, com tanta eloquência que, hoje, quarenta anos depois, ainda conseguimos contemplá-lo como um cume imponente na cordilheira que é a história da imprensa. A passagem do tempo, aliás, realçou o seu valor.

Após a queda de Nixon, o jornalismo investigativo ganhou força. Em 1975, nasceu nos Estados Unidos uma associação – a Investigative Reporters & Editors (IRE) – que daria novo impulso a esse ramo do jornalismo profissional e que se firmou como uma especialização. Várias outras instituições surgiram a seguir. No Brasil, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) só foi criada em 2002, mas seus efeitos benéficos se impuseram rapidamente. A atuação dos dirigentes da entidade foi determinante para a aprovação da Lei de Acesso à Informação, sancionada pela presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011, que obriga as autoridades a abrir aos cidadãos informações da administração pública.

Sem dúvida, qualquer modalidade jornalística sempre é uma forma de investigação que visa produzir, por assim dizer, um primeiro rascunho de conhecimento minimamente sistematizado sobre um aspecto da realidade. Entretanto, a expressão jornalismo investigativo não é um reles pleonasmo: designa um campo novo e singular, definido por um conjunto de condutas e rotinas específicas.

Recapitulemos. Em primeiro lugar, o jornalismo investigativo, graças ao método que o define, opera como se fosse uma contraforça legítima e legal em relação ao poder. Por poder, aqui, podemos entender o poder do Estado, o poder econômico, o poder das Igrejas (esse próspero e faraônico ramo de negócios) ou mesmo o poder do crime (do tráfico ou das milícias), que, não raro, se associa a algum(ns) dos três primeiros. A investigação jornalística exerce uma função de freio contra a hipertrofia de força dos poderosos.

Em segundo lugar, o jornalismo investigativo é aquele que conduz a investigação por conta própria. Num livro oportuno, Os novos escribas (Arquipélago Editorial, 2010), o professor Solano Nascimento observa como o jornalismo investigativo no Brasil vive sempre na iminência de se descaracterizar no que ele chama de “jornalismo sobre investigações”, isto é, um relato de segunda mão sobre inquéritos, sindicâncias ou comissões parlamentares de inquérito (CPIs) conduzidas por autoridades que depois transmitem seletivamente as informações à imprensa. Portanto, só se pode falar em jornalismo investigativo – repita-se, quantas vezes for preciso – se a coordenação da investigação que abastece a reportagem estiver, ainda que parcialmente, a cargo da equipe jornalística. Só há jornalismo investigativo propriamente dito onde houver uma investigação independente que se volte contra o poder. Foi isso que Watergate nos legou. É isso que temos o dever de lembrar.

Os donos do poder reagem mal

Um dos pontos mais intrigantes em Todos os homens do presidente é o modo como a Casa Branca e seus satélites se atrapalhavam ao reagir às matérias do Washington Post. Amadorismo do governo e seu séquito? Garganta Profunda dizia que o pessoal do Comitê de Reeleição do Presidente não primava pela inteligência. O fato é que os homens do presidente batiam cabeça na hora de responder aos textos de Bernstein e Woodward. Eles não ignoravam o que saía no Post. Ao mesmo tempo, não desmentiam nada diretamente. Com isso, foram se enrolando na própria corda. A que poderíamos atribuir as atrapalhações?

Há três linhas de explicação. A primeira é mais óbvia. Havia a forte tradição de independência e de precisão do diário comandado com brilho por Katharine Graham, a publisher do Post, e Benjamin Bradlee.

Os textos assinados por Woodward e Bernstein carregavam o que poderíamos chamar de credibilidade subsidiária: além da confiança que a dupla inspirava nos leitores, havia também – e acima – a credibilidade que o jornal já trazia de longa data. Os dois jovens só não poderiam abusar da credibilidade subsidiária. Tinham espaço para publicar com base em fontes não nomeadas, sem ter ainda obtido as provas, mas não podiam errar. Bradlee, Simons e Rosenfeld pressionavam constantemente por informações mais sólidas. Woodward e Bernstein sabiam disso, tanto assim que comemoraram quando “Finalmente haveria uma matéria quase inteiramente baseada em declarações on the record, que a Casa Branca não poderia contestar com o pretexto de serem de fontes anônimas” (p. 188).

A segunda linha de explicação tem a ver com a substância das informações publicadas, que, com ou sem fontes declaradas, eram verdadeiras. Exatamente por isso, as autoridades em torno de Nixon não sabiam bem como reagir. Os homens do presidente, que tinham, digamos, culpa no Capitólio, percebiam nos textos uma senha apavorante (para eles): o que estava escrito ali era fato. Finalmente, a terceira linha de explicação vinha da conjuntura política. Candidato à reeleição, Nixon contava com um favoritismo indiscutível. Em 7 de novembro de 1972, ganhou a disputa contra o senador democrata George McGovern com nada menos que 60,8% dos votos populares e 97% dos votos no Colégio Eleitoral. Do alto de seu favoritismo e, depois, dos resultados eleitorais, os republicanos se deixaram inebriar pela arrogância e investiram na tática de desmoralizar o Post, acusando-o de ser partidário. Acreditaram que, desqualificando o meio, esvaziariam a mensagem.

“A Casa Branca decidira que o problema era não a conduta dos homens do presidente, e sim a conduta da imprensa”, contam Woodward e Bernstein (p. 197). Depois disso, a mesma Casa Branca começou a excluir o Post da cobertura dos eventos sociais. Certa manhã, no Capitólio, o líder republicano no Senado, Hugh Scott, proclamou que o caso Watergate não era do interesse do eleitor médio, e sim “apenas do senador McGovern e da mídia” (p. 105). Enfim, surfando na popularidade de Nixon, seus homens se imaginaram fortes o suficiente para isolar e acuar o Washington Post. Partiram para o jogo baixo. Clark MacGregor, um dos chefes da campanha de reeleição, chegou a ligar para Bradlee com o objetivo de atacar os repórteres (p. 87). (Esse tipo de jogada, aliás, caiu nas graças de políticos brasileiros, que telefonam para diretores de veículos não apenas para se dizerem injustiçados como para propor a demissão de jornalistas. Às vezes, admitamos, a manobra funciona: o político posa de vítima e o profissional vai para a rua.)

Bem, nada disso adiantou. Os republicanos se deram mal em suas investidas, e o fato é que deixaram lições para governantes que vieram depois deles sobre como se comportar nesse tipo de crise. Diante de um escândalo que ocupa a imprensa durante períodos mais ou menos longos – ao qual o professor de Cambridge John B. Thompson, em O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia (Vozes, 2002), deu o nome de “escândalo político midiático” –, as autoridades aprenderam a fingir que “aquilo não é com elas”. Até onde for possível, apostam na mentira, na propaganda maciça e na cooptação dos editores (por meio de atrativos econômicos, inclusive). Quando essas armas se esgotam, lançam mão do recurso extremo: acionam instrumentos do Estado contra os veículos críticos, instilando medo na sociedade. Quando teve chances, Nixon tentou semear temor, mas fracassou também aí. Alguns líderes sul-americanos têm sido mais exitosos nessa distorção e, quanto a isso, é bom não baixar a guarda.

250 milhões de dólares

Em agosto de 2013, o Washington Post, cuja grandeza moral lhe permitia enfrentar a fúria da Casa Branca, foi vendido por um preço constrangedor: 250 milhões de dólares. O comprador foi Jeff Bezos, o festejado proprietário da Amazon. Detentor de uma fortuna estimada em 27,2 bilhões de dólares – o que faz dele um dos vinte homens mais ricos do mundo, segundo a revista Forbes –, Bezos se deu ao capricho de arrematar a divisão de publicações da Washington Post Company (um pacote que inclui o histórico jornal, fundado em 1877, mais meia dúzia de títulos) como pessoa física, ou seja, a Amazon não pôs dinheiro na compra. O diário que a Casa Branca não conseguiu calar entre 1972 e 1974 foi adquirido por menos de um centésimo dos ativos pessoais de Bezos e por menos da metade dos custos da campanha presidencial de Barack Obama.

Também por isso não podemos esquecer Watergate. O valor de uma instituição que provou ao mundo que dois repórteres com menos de trinta anos podem conduzir uma investigação que afronte os interesses do presidente dos Estados Unidos não se reduz a 250 milhões de dólares. Há algo de maior valor aí, um valor que a democracia precisa localizar e resguardar.

Dos anos 1970 até hoje, as teias do poder se tornaram mais truculentas. Não obstante, aprenderam a atuar também com sutileza, alcançando objetivos desleais ou ilegítimos por mesuras cuja malignidade é quase imperceptível. Como vigiar o poder a partir de uma simples redação de jornal? Há caminhos para isso? Ou será que o projeto da imprensa capaz de fiscalizar o poder deixará de ser viável?

Agora, enquanto olhamos para a história da imprensa como quem admira uma cadeia de montanhas em dia de céu claro, mais ou menos como o poeta americano Ezra Pound gostava de olhar para a história da literatura (para ele, os picos mais elevados representavam as obras-primas dos gênios criadores), devemos pensar sobre os destinos do jornalismo, da liberdade e da ordem democrática.

Ao fundo, vemos aquela primeira elevação majestosa, a manchete de Émile Zola. Está plantada no velho continente, sobre o alicerce da livre expressão de uma opinião – ainda que, no episódio do “J’accuse…!”, muita investigação independente tenha embasado as palavras de Zola. Mais perto de nós, ergue-se a montanha americana, forjada pelo direito de saber, de fiscalizar o poder, de informar e ser informado. Nela se funda, por certo, o exercício da opinião, mas sua estrutura mais sólida tem a ver com a informação bem apurada, com o trabalho da reportagem.

Juntos, esses dois cumes compõem os pilares sem os quais a imprensa livre não terá futuro. Agora, precisamos saber pensar e perguntar, opinar e investigar, tudo ao mesmo tempo. Temos de enunciar sem pontificar e, mais ainda, inventar sem esquecer. Enquanto olhamos para o horizonte que ficou para trás, sabemos que devemos ir adiante. E rápido.

Quarenta anos depois da queda de Nixon, vivemos tempos hostis.

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Um modelo de jornalismo investigativo – Otavio Frias Filho

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Eugênio Bucci é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Também dirige o curso de pós-graduação em jornalismo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, onde é diretor de Redação da Revista de Jornalismo ESPM (edição brasileira da Columbia Journalism Review), condecorada com o Prêmio Esso de Jornalismo de 2013. Escreve quinzenalmente em O Estado de S. Paulo e é colunista da revista Época