Na polêmica entre simplificar ou não Machado de Assis para que ele seja mais lido, marco coluna do meio.
A boa crítica literária combina mais com iconoclastia do que com sacralização. Não há necessidade de endeusar cada uma das frases lapidadas pelo autor, especialmente se elas estão a criar uma barreira que afasta potenciais leitores do texto. Se é lícito fazer adaptações de Homero, Cervantes e Shakespeare, não há por que considerar Machado intocável.
No mais, palavras envelhecem. Por idiossincrasias do desenvolvimento de português e dos autores que elegemos como canônicos, é raro ver aqui edições bilíngues da versão arcaica do idioma para a moderna, mas elas são comuns em inglês ou francês. Um texto como Beowulf, composto entre os séculos 8º e 11º, é ininteligível para o falante de inglês atual, daí que as edições são “traduzidas”, isto é, adaptadas para que possam ser compreendidas.
Nota de rodapé
Aos puristas resta buscar edições bilíngues e estudar as declinações do inglês antigo, que desapareceram.
De modo um pouco menos dramático, um autor tão importante e nem tão antigo como Rabelais (c. 1483-1553) também costuma ser contemplado com edições modernizadas ou bilíngues. A barreira linguística entre o francês renascentista de Rabelais e o moderno não é intransponível como no caso de Beowulf, mas o respeito ao original tornaria a leitura um processo penoso e não prazeroso. Entre o Beowulf, Rabelais e Machado a diferença é muito mais de grau do que de natureza.
Resta saber se o projeto de modernização de Machado que gerou toda a controvérsia vale a celeuma. Tenho dúvidas. Se os exemplos de intervenções mostrados na reportagem da Folha de sábado [10/5] são representativos, trocar reproche por “censura” é muito mais serviço para uma nota de rodapé do que para uma “tradução”, especialmente uma que consome R$ 1 milhão em verbas públicas.
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Hélio Schwartsman é colunista da Folha de S.Paulo