Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Editoras ao mar

Nesta segunda-feira [19/5], toda organização jornalística americana que se preza (com ou sem razão) estará representada na formatura de uma pequena faculdade da Carolina do Norte. Quando o nome da paraninfa for anunciado, um frisson correrá pela plateia. O foco das câmeras e dos repórteres não será a turma de formandos da escola Wake Forest e sim Jill Abramson. A primeira mulher editora executiva em 160 anos de história do New York Times acaba de ser defenestrada com uma virulência mais comumente dedicada a corretores de Wall Street, escoltados até a saída quando flagrados em crime financeiro por um promotor federal.

O discurso que a jornalista havia sido convidada a fazer por ocupar o cargo que perdeu será vingativo? Ou, quem sabe, vai ser uma expressão de apoio às jovens repórteres de sua antiga redação, que ela surpreendeu num bar numa das reuniões do “Old Girls Club”, uma happy hour de encorajamento feminino? Ou será que Abramson vai mandar um recado enérgico sobre o muro de separação de Igreja e Estado, quer dizer, editorial e comercial, que o novo CEO do jornal, Mark Thompson, segundo se comenta aqui, tenta contornar por um túnel subterrâneo de anúncios apresentados como conteúdo jornalístico?

O certo é que Jill Abramson não cometeu crime editorial. Não foi flagrada desviando dinheiro. Enfrentou o risco de ter seus correspondentes expulsos da China numa série de reportagens sobre o enriquecimento da família do primeiro-ministro Wen Jiabao. Inovou o conteúdo do jornal apelidado de Senhora Grisalha com novidades como o deslumbrante Snow Fall de 2012, uma reportagem sobre uma avalanche de neve, marco no jornalismo multimídia. E, se por acaso conta ponto, sob os dois anos e meio de comando de Abramson, o Times ganhou oito prêmios Pulitzer. Nada disso mereceu o destaque de Arthur “Pinch” Sulzberger Jr, o publisher e herdeiro da família que controla o melhor jornal da língua inglesa. O apelido “Pinch” (pitada) é uma referência pouco lisonjeira ao apelido de seu pai, “Punch” (soco ou ímpeto) Sulzberger.

Casca de banana

Antes que o leitor reclame, coberto de razão, “nada mais chato do que jornalista extraindo drama de notícia sobre jornalista”, explico que a repercussão da desastrada demissão de Abramson parece ter tocado num nervo sensível, e o nome da editora, desconhecido da maioria dos americanos, passou a dominar trendings de mídia social. Ken Auletta, o estimado repórter da revista New Yorker, revelou que a gota d’água de uma relação já deteriorada com o publisher e o CEO foi a disparidade de salário recentemente descoberta por Abramson. Ela soube que, não só ganhava menos do que seu antecessor Bill Keller, como, quando era managing editor, ganhava menos do que o seu número dois, sim, um homem.

Não sendo exatamente uma diplomata, Abramson, além de se queixar à direção do jornal, contratou um advogado para negociar o que considerava a correção de uma injustiça. Mas na litigiosa e combativa Nova York, você contrata advogado(a) à tarde e à noite janta com a pessoa que o(a) advogado(a) vai interpelar. O que não foi o caso, naturalmente, porque se tratava de uma mulher “insistente” (ao contrário de um homem ousado) e “abrasiva” (ao contrário de um intransigente defensor de princípios).

A demissão sumária de Abramson reascendeu mais do que o debate sobre o velho problema do salário mais baixo pelo mesmo trabalho executado por homens em qualquer profissão. Foi interpretada como um sinal evidente do duplo padrão de tratamento para mulheres em posições de poder.

Vários anos antes de Faça Acontecer, o badalado livro manifesto da chefe operacional do Facebook, Sheryl Sandberg, Abramson já trilhava sua ascensão na hierarquia do Times seguida pela fama de “difícil”. Dois de seus três antecessores recentes, eram homens notórios por um estilo gerencial baseado em intimidação. Qualquer jornalista sabe que redações não são campinas onde fadas madrinhas batem suas asas. O trabalho de um editor só beneficia o leitor se ele souber dizer “não” aos repórteres.

Na mesma semana da demissão de Abramson, Natalie Nougayrède, editora executiva do Le Monde, o mais importante jornal francês, renunciou, frustrada com a resistência a seus esforços para integrar a edição de papel à edição digital. Como Abramson, Nougayrède é uma brilhante ex-correspondente. Como Abramson, ela enfrentou resistência à mudança movida a altas doses de testosterona. Escrevo no domingo durante uma visita a um publisher formado no competitivo mundo editorial de Manhattan. Ele sacode a cabeça. “Ih, já vi este filme. O pessoal do impresso não conversa com o digital e vê a integração como o inimigo quando, de fato, é a única saída.”

É possível que Jill Abramson tenha perdido um dos mais influentes postos da mídia mundial por incompetência administrativa, como acusa o homem que a escolheu para o cargo (o que faz dele, hum, competente?).

E é igualmente possível que sua queda tenha sido provocada pela casca de banana da narrativa chauvinista.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York