Na década de 1970, Portugal passava por momentos de ampla complexidade, sobretudo sob o ponto de vista socioeconômico, com reflexos no campo político. A guerra pela manutenção de seu retrógrado império colonial, iniciada ainda nos anos 60, não demonstrava sinais de que chegaria ao fim brevemente e a manutenção das então denominadas “possessões coloniais” denotava ainda mais esse caráter obsoleto da política portuguesa. A economia lusitana, uma das mais atrasadas do cenário europeu, abalou-se ainda mais com as enormes despesas militares geradas em razão dos conflitos. No entanto, em 1974, há exatos 40 anos, a situação se modificaria de maneira rápida e efetiva.
Eram transcorridos poucos minutos da madrugada de 25 de abril de 1974, em Lisboa, quando a rádio católica Renascença transmitiu as primeiras estrofes da música “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso. A canção, então proibida pela censura salazarista, foi o sinal para que os oficiais do Exército português iniciassem uma rebelião que, de maneira breve e sem muita violência, redefiniria os rumos políticos do país.
O golpe levado a cabo naquela madrugada romperia com o longo período ditatorial que por mais de 40 anos vigorou em Portugal e aproximaria o país das esquerdas europeias.
Essa insurreição despertaria o interesse da mídia internacional, que acompanharia o desenrolar dos fatos do dia 25 de abril de 1974 noticiando de maneira rápida e ampla aquela que seria tida como a última revolução europeia no século 20. No Brasil, mais do que destacar os acontecimentos daquele 25 de abril, a imprensa passaria a utilizá-los de forma ímpar.
Os maiores e mais representativos periódicos da grande imprensa brasileira, com grande destaque para O Estado de S. Paulo, ao noticiar e comentar os acontecimentos relativos à eclosão da Revolução dos Cravos e aos primeiros desdobramentos políticos daquele movimento – compreendidos no período de 25 de abril de 1974 a julho de 1976 –, o fizeram sob um aspecto bastante peculiar, tendo em vista a dinâmica do quadro político do Brasil, ainda sob a vigência de uma ditadura militar e com o início de um processo oficial de distensão política.
Em meio à ação da censura, o periódico paulista, notadamente por intermédio de sua editoria internacional, encetou representações acerca do rumo político tomado por Portugal e, por meio de expedientes editorais e visuais, as investiu de sentidos singulares para a população brasileira, então ainda às voltas, de um lado, com a ditadura e, de outro, com o crescente descontentamento de vários segmentos da sociedade com o regime militar e algumas conjecturas ou alguns poucos passos no sentido de uma abertura política promovida pelo governo do presidente Ernesto Geisel.
Assim, noticiar o que se passava em Portugal passou a ser uma alternativa viável para muitos jornalistas tecerem suas críticas – ainda que indiretas – ao regime militar brasileiro. E tais críticas se manifestariam em editoriais, colunas, charges e notícias ao longo dos dois conturbados anos da retomada da democracia em solo português.
Avanços e retrocessos
Ainda que contasse, naquele momento e posteriormente, com a presença de censores no ambiente das redações, o material jornalístico veiculado por O Estado de S. Paulo foi capaz de falar sobre e destacar a volta da liberdade de expressão, o fim da censura e a queda da ditadura em Portugal. Além disso, abriu espaço em suas páginas para que críticos ao regime militar brasileiro – sobretudo membros da oposição política consentida, o MDB – emitissem sua opinião sobre o tema, destacando a importância do retorno à democracia em Portugal.
Nesse sentido, o Estado daria amplo espaço editorial em suas páginas à reprodução de discursos oficiais proferidos por políticos brasileiros, como o do então deputado estadual Edson Khair, que saudava o povo português por, naquele momento, ver-se livre dos grilhões que o detinham há mais de 40 anos, criticando diretamente os regimes autoritários. Outro discurso ainda mais incisivo publicado nas páginas do matutino de São Paulo foi o do também emedebista Marcos Freire, que, ao destacar a Revolução dos Cravos, adiantava-se na busca por uma abertura política menos lenta e gradual, demonstrando que o Brasil também poderia avançar no sentido do retorno às práticas democráticas, se o fizesse convocando uma Assembleia Constituinte.
Nas páginas do Estadão, as críticas diretas e indiretas ao regime militar se somaram aos já então tradicionais meios utilizados para driblar a censura, como a substituição de trechos censurados por versos de Camões, por exemplo. Assim, ao noticiar os acontecimentos do movimento revolucionário lusitano, fixava-se mais uma via crítica aos arbítrios do regime militar brasileiro.
O jornal O Estado de S. Paulo teve destaque nesse noticiário ao demonstrar a seus leitores que a sociedade portuguesa, de longa convivência com a ditadura, punha-se rumo à democracia, destino que há certo tempo era almejado pela sociedade brasileira, por causa da crescente oposição de vários de seus segmentos à ditadura militar.
No ano em que se comemoram 40 anos da vitória da democracia em Portugal e em que se recordam os 50 anos da ascensão dos militares ao poder no Brasil, a reflexão acerca da proximidade entre o desenrolar dos rumos políticos nos dois países aparenta ser cada vez mais importante, sobretudo por nos demonstrar que avanços e retrocessos democráticos cada país vivenciou após os acontecimentos neste ano rememorados.
******
Rafael Henrique Antunes é mestre em História pela Unesp (campus de Assis), é docente da Faculdade Eduvale de Avaré e da rede pública de ensino do estado de São Paulo