A notícia mais quente dos últimos tempos sobre a guerra no Iraque foi exposta no programa 60 Minutes, da CBS, em 28/4. O apresentador Dan Rather apresentou fotos aterradoras em que soldados americanos torturavam prisioneiros iraquianos, o que levou 17 militares a serem exonerados.
Enquanto isso, aparentemente em outra dimensão, a emissora ABC fez uma edição especial do programa Nightline em homenagem aos soldados mortos na guerra. Após uma breve introdução, Ted Koppel leu em voz alta os nomes dos militares, acompanhados das respectivas fotos de cada um. Inicialmente, o programa teria 30 minutos e só daria conta de citar 523 mortos, deixando 201 – vítimas de acidente, fogo amigo e suicídio – de fora da homenagem. Depois a emissora mudou de idéia, esticando o programa para 40 minutos e acrescentando os 201 restantes.
Leroy Sievers, produtor-executivo do Nightline, disse que a inspiração para o programa foi a edição de junho de 1969 da revista Life, que exibiu fotos de todos os homens mortos durante uma semana no Vietnã. Apesar de estar claro que a homenagem da Life fora uma forma quase direta de criticar a guerra, uma porta-voz da ABC excluiu qualquer motivação política da emissora. ‘É puramente um tributo’, disse. De qualquer forma, o programa explosivo da CBS foi ao ar duas noites antes que o da ABC. O mínimo que esta poderia fazer era suspender a brilhante idéia de homenagear pessoas que podem, em algum momento no último ano, ter praticado torturas contra civis iraquianos. Mesmo que houvesse uma motivação política, de crítica à guerra, imbuída no aparente tributo.
O contraste entre os dois programas chega a ser irônico. A CBS disse que o governo havia pedido que segurasse as imagens dos soldados torturando os iraquianos. A emissora até se dispôs a atender ao pedido, mas mudou de idéia quando rumores de que possuía tais imagens vazaram.
Ainda mais irônico, na semana passada o grande assunto na mídia e no próprio governo foi a exibição das imagens de caixões de soldados americanos mortos na guerra, conforme noticiou o Observatório da Imprensa [veja link abaixo]. Os principais jornais deram na capa fotografias expostas no sítio Memory Hole.
A ordem dos fatores
Até o 60 Minutes ir ao ar, o Nightline parece ter enfurecido pessoas favoráveis à guerra, já que poderia ser interpretado como uma crítica à atuação americana no Iraque. A explicação apolítica da ABC não convenceu a todos e uma grande cadeia de televisão americana, Sinclair Broadcast Group, chegou a boicotar as afiliadas da ABC durante a transmissão do tributo, dizendo que o programa é uma manobra política travestida de notícia. A Sinclair, que possui 62 estações de TV em 39 mercados, atingindo quase 24% das TVs americanas, afirmou em seu sítio que Koppel e seu programa estavam querendo ‘mostrar apenas um aspecto da guerra de forma a influenciar a opinião pública contra a ação militar no Iraque’.
Com o programa da CBS sendo exibido antes, porém, pode-se dizer que, involuntariamente, um programa que poderia ser visto como crítica negativa acabou parecendo favorável à invasão do Iraque. Isso porque exibir um tributo aos soldados mortos em tom patriótico perde qualquer valor crítico se antes disso as fotos de torturas praticadas por esses mesmos soldados foram expostas e horrorizaram o mundo todo. Ao parecer uma crítica sutil demais, que seria perceptível se considerada isoladamente, foi obnubilada por uma crítica bem mais pungente e direta. Grosso modo, a ABC ofereceu salgadinhos depois do bolo.
Com informações de Steve Gorman [Reuters, 29/4], Bill Carter [The New York Times, 28/4/04] e Reuters [27/4].