Tuesday, 26 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

‘Cobertura adversária’ no Congresso Nacional

Não há dúvida de que existem problemas graves com alguns de nossos representantes eleitos para o Congresso Nacional. Número significativo de deputados e senadores tem estado freqüentemente envolvido em atividades ilícitas e/ou eticamente condenáveis. A mídia tem sido instrumento importante na revelação pública de muitos desses casos. Procedimentos de investigação ou processos legais contra parlamentares tramitam tanto nas comissões de ética do próprio Congresso como nas instâncias competentes do judiciário.

Uma das questões não resolvidas que envolvem eticamente (ou legalmente?) os parlamentares tem a ver com a auto-outorga de concessões do serviço público de radiodifusão a si mesmos, prática que eterniza o chamado ‘coronelismo eletrônico’. Este tema tem sido objeto de pesquisa e denúncia de nossa parte há vários anos [ver ‘Rádios comunitárias: coronelismo eletrônico de novo tipo (1999-2004)‘ e ‘Concessionários de radiodifusão no Congresso Nacional: ilegalidade e impedimento‘]

É, no entanto, forçoso reconhecer que a cobertura política que é feita diariamente das atividades no Congresso Nacional se caracteriza por salientar quase que exclusivamente aspectos negativos do Poder Legislativo e de seus integrantes. E, algumas vezes, de forma preconceituosa ou revelando profundo desconhecimento da importância e da riqueza das culturas regionais brasileiras.

São João

Qualquer brasileiro com razoável nível de informação sabe que as festas juninas de São João – dia 24 de junho – estão para a cultura e a tradição do Nordeste como o Natal está para o resto do país ou, por exemplo, o ‘Thanksgiving’ está para os Estados Unidos. Alguns estados nordestinos literalmente param neste período. Este ano, como o São João caiu numa terça feira (24), desde a sexta feira anterior (dia 20) havia um clima de alegria no ar e, nas cidades coloridas e ornamentadas, só se falava em ir para Caruaru (PE) ou Campina Grande (PB) onde acontecem as principais festas populares. As estradas estavam lotadas e vivia-se um ‘clima’ de Copa do Mundo.

Neste tipo de circunstância, qual seria o comportamento a se esperar de um deputado ou senador nordestino? Que ele permanecesse em Brasília ou que ele estivesse junto à sua base eleitoral participando da principal festa popular da região? Em circunstância semelhante, o que esperar de qualquer parlamentar em qualquer outro país de democracia representativa?

A cobertura política que, em boa parte, se faz do Congresso Nacional reduz o trabalho de representação popular de senadores e deputados à sua presença nas sessões de votação em plenário. Mesmo as importantes atividades nas comissões – à exceção das CPIs – são, geralmente, desconsideradas como trabalho. As viagens de parlamentares aos seus estados são normalmente tratadas como ‘falta’ indevida ao trabalho.

Discurso adversário

Tudo isso vem a propósito de matéria opinativa veiculada no Jornal da Band na terça-feira (24/6), dia de São João. Os parlamentares (sobretudo os nordestinos) que viajaram para os seus estados foram acusados de receber o salário sem trabalhar; de participarem das festividades de São João por motivos ‘eleitoreiros’ e de impedirem as votações de temas relevantes no Congresso. E mais: foi feita uma projeção de ‘esvaziamento’ do Congresso e, portanto, de ‘afastamento do trabalho’, com as desculpas das campanhas eleitorais e das festas juninas.

As imagens que fizeram ‘fundo’ para a matéria foram os corredores do Congresso decorados de bandeirinhas, os plenários da Câmara e do Senado vazios e as danças das festas juninas.

Transcrevo abaixo a íntegra da matéria opinativa:

‘Apresentadora: O Congresso se enfeitou para a noite de São João, mas deputados e senadores participam de festas juninas longe de Brasília. E mesmo sem trabalhar, os parlamentares vão receber o salário normalmente.

Repórter: Congresso todo enfeitado no melhor estilo junino, mas nem sinal dos pares para o arrasta-pé. Deputados e senadores, principalmente os nordestinos, preferiram festejar o São João do jeito eleitoreiro, que dá mais votos e prestígio político, junto às bases.

Na Câmara, o presidente da Casa bem que tentou. Mandou telegramas convocando os deputados, em vão, quase ninguém veio.

Presidente da Câmara/Arlindo Chinaglia: Eu respeito às tradições, mas evidentemente que aqui nós vamos tratar de assuntos, todos eles relevantes para o país.

Repórter: E nessa quem dançou foi falta de votação. Com o recesso branco projetos importantes ficam mais tempo parados. Aqui no Senado, por exemplo, o projeto que reduz a maioridade penal está pronto para ser votado há mais de um ano.

E agora, até o fim das eleições municipais, o Congresso deve permanecer vazio. As festas juninas, o recesso parlamentar e as campanhas eleitorais são as desculpas para o afastamento do trabalho. O presidente do Senado, nordestino, nem veio a Brasília, já está em Natal para os festejos e liberou todos os senadores para fazer o mesmo.

Senador Heráclito Fortes (DEM-PI): Nós não precisamos sair de Brasília para procurar quadrilha, pular fogueira e nem pisar em brasas. Aqui tem tudo.’

Volto a recorrer aqui a texto clássico da professora Maria do Carmo Campello de Souza, já falecida, publicado há 20 anos (‘A Nova República brasileira: sob a espada de Dâmocles’, in Democratizando o Brasil, organizado por Alfred Stepan, Paz e Terra, 1988). O texto está mais atual do que nunca e vale a longa citação:

‘A intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político brasileiro requer um estudo lingüístico sistemático sobre o `discurso adversário´ em relação à democracia expresso pelos meios de comunicação. (…) os meios de comunicação tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do processo de system blame (culpar o sistema ou fazer uma avaliação negativa do sistema democrático ou da democracia). Deve-se assinalar o papel exercido pelos meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (…)

O teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba por estabelecer junto à sociedade (…) uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos. (…) A despeito da evidente responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os dardos de sua crítica, poupam outros setores (…). Tem-se muitas vezes a impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos políticos, dos partidos ou do Congresso (…).’ (pp.588-9, passim).

Já não seria hora de a grande mídia rever seus critérios de cobertura política opinativa, sobretudo em relação ao Congresso Nacional, e tentar evitar que tenhamos ‘uma ligação direta e extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a substância mesma dos regimes democráticos’?

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor/organizador, entre outros, de A mídia nas eleições de 2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007)