Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma aposta na educação como prática transformadora

Antes de repassar alguns episódios da história do Ensino do Jornalismo e da Comunicação no Brasil e em outros países nas Américas, na Europa e na África, cabe registrar a atualidade da proposta de uma pedagogia transformadora defendida por Paulo Freire. Entre as obras clássicas do mestre Freire está o livroEducação como prática de liberdade. Uma liberdade que deveríamos reivindicar para rever os modelos de constituição das Ciências da Comunicação como campo científico e repensar os próprios processos de ensino-aprendizagem com objetivo de alcançar uma educação transformadora que possibilite formar cidadãos em condições de intervir de modo criativo na realidade para mudar para melhor o mundo em que vivemos.

Se, hoje em dia, as Ciências da Comunicação são uma área científica que congrega diversas disciplinas e interfaces de conhecimentos multidisciplinares, um século atrás a situação era muito diferente, quando o Jornalismo se consagrou como a primeira das disciplinas da área a conseguir status acadêmico. O movimento que desencadeou todo este processo teve seus passos iniciais em países como Alemanha, França e Estados Unidos.

Entre os pioneiros deste esforço para transformar o Jornalismo em disciplina acadêmica podemos citar os estadunidenses Williard Grosvenor Bleyer, criador do Curso de Jornalismo na Universidade de Wisconsin, em 1905 e Walter Williams, Diretor da Escola de Jornalismo da Universidade de Missouri, fundada em 1908. Os dois estiveram entre os 23 fundadores da Associação dos Professores de Jornalismo dos Estados Unidos em 1912, cabendo a Williard Bleyer a presidência da atualmente conhecida como AEJM, (Association for Education in Journalism and Mass Communication).

Antes de falecer em 1935, aos 62 anos, Bleyer conseguiu fundar a Escola de Jornalismo na Universidade de Wisconsin e lançar o primeiro doutorado no mundo especializado em Jornalismo, um marco no ensino e na pesquisa na área em 1927. A partir da segunda Guerra Mundial, com a participação decisiva de Wilbur Schramm, um doutor em Letras formado na Universidade de Iowa e que havia trabalhado para a Oficina de Propaganda do Governo dos Estados Unidos, o ensino teve uma inflexão completa, com a criação dos institutos de pesquisa em comunicação. O objetivo principal de Schramm era desvincular o ensino da comunicação da reprodução obrigatória dos cânones da prática profissional do Jornalismo, fortalecendo a pesquisa dos fenômenos comunicacionais em sentido mais amplo.

Schramm, que faleceu em 1987, trabalhou de 1947 a 1973 na Universidade de Illinois e de 1961 e 1973 na Universidade de Stanford. Muito da influencia mundial de Schramm aconteceu como decorrência da publicação do livro Mass Media and National Development, em 1964 e patrocinado pela UNESCO. O modelo proposto por Schramm teve duas consequências básicas: 1) por um lado, contribuiu para a consolidação das Ciências da Comunicação como grande área científica e 2) por outro, colaborou para criar um certo preconceito em relação à pesquisa científica relacionada com as práticas profissionais específicas na área da Comunicação.

Diretrizes homologadas

Além dos Estados Unidos tivemos, entre outras experiências muito significativas, a Escola Superior de Jornalismo de Paris na França, de 1899, que contou entre seus professores com Emile Durkheim e Anatole France, a Manuel Márquez Sterling, em Cuba, de 1943, com destaque para o mestre Octavio de la Suarré, a de Leipzig, na Alemanha, de 1916, com o fundador dos estudos científicos em Jornalismo naquele país, Karl Bücher, a Escuela de Periodismo de La Plata, de 1935, dirigida pelo jornalista e professor Manuel Elicabe e, anos mais tarde, a de Stellenbosch, na África do Sul, de 1978, liderada pelo professor Piet Cillié.

No caso brasileiro entre os principais formuladores dos projetos de ensino de Jornalismo e Comunicação destacamos Carlos Rizzini, (Universidade do Rio de Janeiro e Faculdade Cásper Líbero), Luiz Beltrão (Universidade Católica de Pernambuco e Universidade de Brasília), Danton Jobim (Universidade do Brasil), Celso Kelly (Universidade do Brasil) e José Marques de Mello (Universidade Católica de Pernambuco, Faculdade Cásper Líbero, Universidade de São Paulo e Universidade Metodista de São Paulo). Até 1968 o currículo tinha como principal objetivo a formação de jornalistas, partindo de uma ampla formação humanista e com pouca ou nenhuma experimentação de práticas laboratoriais.

Com a reforma universitária de 1968, Celso Kelly, responsável pela elaboração do parecer que definiu o currículo mínimo para a formação de jornalistas, recomendou a criação das faculdades de comunicação, seguindo o modelo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, com a abertura de novos cursos de graduação em Cinema, Relações Públicas, Publicidade e Propaganda, Rádio e Televisão e Editoração. Uma vez mais, com acerto, em relação à América Latina, o Brasil adotou o princípio da antropofagia, adaptando a proposta da UNESCO do comunicador polivalente à nossa tradição de formar profissionais em áreas específicas através da oferta de cursos de comunicação com habilitações especializadas.

Em trabalhos pioneiros elaborados a pedido do Ministério da Educação ou do CIESPAL nos anos 50 e 60 Carlos Rizzini, Luiz Beltrão, Danton Jobim e Celso Kelly formularam propostas para o ensino de Jornalismo, nos clássicos estudos Ensino de Jornalismo, Pedagogia do Jornalismo, Metodologias de Ensino de Jornalismo e Novas Dimensões do Jornalismo, muitas delas ainda esperando por ser implantadas em nossas escolas em pleno século XXI. Um estudo sistemático destas experiências pode ser encontrado em Contribuições para uma Pedagogia da Comunicação de José Marques de Melo, de 1974.

Desde o começo dos anos 70 os profissionais são formados na maioria dos casos através das habilitações do curso de comunicação, com a obrigatoriedade da existência de laboratórios a partir de 1978. Na área de Jornalismo o estágio ficou proibido com o parecer 02/84 do antigo Conselho Federal da Educação. Com a imposição de um currículo mínimo obrigatório existia um ciclo básico de dois anos comum a todas as habilitações e dois anos destinados aos estudos profissionalizantes para as disciplinas técnicas de habilitação.

A criação dos cursos de pós-graduação (UFRJ, USP, UnB e PUC-SP) e das primeiras sociedades científicas nos anos 70 (ABEPEC e INTERCOM) e das revistas científicas (Revista Brasileira de Comunicação, Cadernos de Jornalismo e Editoração) possibilitou qualificar a formação, antes mais voltada para o caráter profissional, sem existência de pesquisa acadêmica sistemática destinada a titular mestres e doutores.

Entre os anos 80 e 90 cada vez mais a área se consolidou com o aumento dos pós-graduados entre os docentes dos cursos de graduação. Dois marcos importantes são a fundação da Compós em 1992 e a expansão da pós-graduação para fora do eixo Rio-São Paulo- Brasília, com a abertura da pós-graduação na Faculdade de Comunicação na Universidade Federal da Bahia em 1990. Em 2000 são aprovadas as Novas Diretrizes para os Cursos de Comunicação o que permitiu a abertura de cursos específicos como aconteceu com o de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e para a adequação dos projetos político-pedagógicos à realidade regional das escolas, evitando a padronização da matriz curricular no país, como ocorria nos tempos do currículo mínimo obrigatório para todos.

Desde meados dos anos 90, com a criação da Sociedade Brasileira dos Estudos de Cinema e Audiovisual, as ciências da comunicação voltaram a se afirmar através da valorização das suas práticas específicas. Até então havia dúvidas se era possível a convivência das várias disciplinas dentro das Ciências da Comunicação ou se a ruptura era inevitável. A tensão mais nítida envolvia a comunidade dos professores e pesquisadores em Jornalismo, muito deles defensores de que a área buscasse o seu próprio caminho no sistema geral das ciências.

Além de lançar a primeira sociedade científica coube ao Cinema o pioneirismo na implantação das diretrizes específicas na graduação. A partir de 2003, depois da fundação da Associação Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo, a criação de outras sociedades científicas para cada uma das disciplinas teve continuidade. Este movimento redundou na criação da Federação Brasileira das Associações Acadêmicas e Científicas da Comunicação (SOCICOM), em 2008, e que vem realizando trabalho importante para o reconhecimento institucional das Ciências da Comunicação como grande área de conhecimento.

Como decorrência de um trabalho institucional realizado pelas principais entidades da área de Jornalismo (SBPOR, FNP e FENAJ) em 2009 o Ministério da Educação nomeou uma Comissão de Especialistas, com representantes das entidades e dos profissionais, liderada pelo professor José Marques de Melo para propor Diretrizes Curriculares próprias para os cursos de Jornalismo. Mais de três anos depois da entrega do relatório da comissão o CNE publicou no começo de 2013 o parecer que aprovou a adoção das Diretrizes Curriculares para a área de Jornalismo. E somente em setembro de 2013 a comunidade acadêmica de Jornalismo recebeu a notícia da homologação da medida pelo Ministério da Educação.

Legado dos fundadores

O movimento de fortalecimento da formação e da pesquisa especializada em Jornalismo no país refletiu uma tendência mundial acentuada a partir de meados da década de 90 do século passado, com a abertura de grupos de estudos em Jornalismo na International Communication Association e na International Association and Mass Communication e com o lançamento de revistas científicas especializadas como Ecquid Novi, Pauta Geral, Journalism, Journalism Studies, Journalism Practice e Brazilian Journalism Research. O mérito desta rearticulação da área é que este retorno às origens em vez de significar uma ruptura com os estudos teóricos de Comunicação possibilitou o aumento da sua legitimação como campo científico autônomo, através do reconhecimento das particularidades de suas subáreas.

Os principais desafios daqui para o futuro são: 1) evitar que o fortalecimento das especificidades possibilite a fragilização das Ciências da Comunicação como uma grande área de conhecimento; 2) reformular por completo os modelos de ensino-aprendizagem existentes baseados na reprodução do conhecimento em sala de aula; 3) articular a formação de graduação com a pesquisa e a inovação; 4) propor a criação de sistemas de avaliação da qualidade da formação independentes do Ministério da Educação, conforme adotado nos EUA por Willard Bleyer desde os anos 20. A depender de como for o nosso desempenho diante dos enormes desafios que temos, poderemos avaliar se estivemos ou não a altura dos fundadores de nossa área de conhecimento como Willard Bleyer, Wilbur Schramm, Danton Jobim, Luiz Beltrão ou José Marques de Melo. O convite para construir uma educação transformadora para o Jornalismo e para as Ciências da Comunicação está posto. Mão à obra!

Referências

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Elias Machado é jornalista e doutor em Jornalismo pela Universidade Autônoma de Barcelona, diretor do Departamento de Projetos de Pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina