David J. Gunkel é professor do Departamento de Comunicação na Northern Illinois University, Chicago, EUA, onde desenvolve estudos sobre tecnologias da informação e comunicação. Entre seus livros mais importantes estão Hacking Cyberspace (2001) Transgression 2.0 (2011) e The Machine Question: Critical Perspectives on AI, Robots and Ethics (2012), ainda não traduzidos para o português. Em novembro de 2013, Gunkel veio a Natal participar do II Encontro Nacional da Rede de Grupos de Pesquisa em Comunicação, quando realizou uma conferência intitulada “Contrato Social 2.0”. Na esclarecedora e generosa entrevista que se segue, realizada por e-mail em março deste ano, e pela qual somos gratos, David Gunkel fala sobre cibercultura, Facebook, ativismo digital e outros assuntos.
Em um texto apresentado no II Encontro Nacional da Rede de Grupos de Pesquisa em Comunicação, em novembro de 2013 em Natal, o senhor propõe um resgate da teoria do contrato social à luz do Facebook. Como desenvolveu essa ideia e a que conclusões o senhor chegou?
David J. Gunkel – Você está referindo-se, acredito, ao texto intitulado “Contrato Social 2.0”. Este ensaio, como você descreveu com previsão, aplica teoria do contrato social à mídia social em geral e, em particular, ao Facebook. O texto em si possui uma história interessante. Originalmente o escrevi a convite do dr. Can Bilgili, da Universidade do Comércio de Istambul. Foi inicialmente desenvolvida na Cracóvia, Polônia, durante o semestre de outono (no hemisfério norte) de 2011, publicado em turco em 2012, e então entregue no segundo Encontro Nacional da Rede de Grupos de Pesquisa em Comunicação, em Natal, em Novembro de 2013. Mas você me perguntou como cheguei a esta ideia e quais as conclusões que podem ser extraídas dela.
A ideia originalmente surgiu enquanto trabalhava com meus alunos. Ao discutir sobre a problemática relativa à privacidade e controle dos dados pessoais de uma pessoa, meus alunos e eu começamos a observar termos dos acordos de serviço de certo número de aplicativos sociais online – Second Life, Google+, e Facebook. Ao fazê-lo, descobrimos algumas coisas interessantes. Primeiramente, observamos que ninguém de nós lê tais documentos. Mesmo consentindo sobre eles, clicando em “concordo”, no quadrado relacionado com a afirmação “li os termos do serviço e concordo com os mesmos”, nunca nos preocupamos em ler sobre o que estávamos concordando. Estamos, de fato, consentindo e aprovando algumas regras e regulações discutíveis, sem saber o que elas de fato estipulam.
Em segundo lugar, descobrimos que tais documentos não apenas articulam assuntos usuais como responsabilidade do usuário e responsabilidade corporativa. Eles, na verdade, buscam estabelecer, justificar e regular os termos de sociabilidade e organização política. Isto fez com que eu percebesse que o modo com o qual eu lia e compreendia estes documentos deveria mudar. Estes textos não eram apenas contratos legais de serviços online, mas sim documentos base de organização social online e ordem. E foi neste momento que percebi que a melhor maneira de compreender tais textos e as redes sociais dirigidas por eles seria usar a teoria do contrato social.
Agora, que conclusões podemos tirar disso? Há muitas. Primeiramente, os termos de uma rede social são, tanto em forma como em função, o “contrato social”. Tais documentos, os quais no caso do Facebook envolvem e aplicam-se a quase meio milhão de usuários em todo o mundo, representam a privatização das políticas à medida que indivíduos formam afiliações sociais sob a soberania não de governos nacionais, mas sim de corporações multinacionais. Tais acordos, portanto, constituem a nova iteração do que filósofos políticos, começando por Thomas Hobbes, referiram-se como o “contrato social”, ou o que tenho chamado contrato social 2.0, tomando como base a nomenclatura usual da indústria de TI. Ignorância não é felicidade. Apesar do fato de que tais documentos determinam e regulam os direitos e responsabilidades dos usuários, decretar termos e condições de afiliações e interações online, muitos de nós – mesmo os atentos às políticas, ignoramos tais textos ao não dar importância aos mesmos, ou os descartamos como legalidades necessárias para obter acesso, mas não muito interessantes ou dignos de considerações. Tal negligencia é irresponsável. Não podemos continuar a agir na ignorância. Ou caso continuemos a agir desta maneira, devemos ter a consciência de que o fazemos por nossa conta e risco.
Em terceiro lugar, e por causa disso, devemos desenvolver uma cidadania crítica para o século 21. Ser crítico com relação a acordos de serviço não significa nem necessariamente implica exclusão da negligência. Seria ingênuo esperar que qualquer organização social, tanto real quanto virtual, estará em completa conformidade desde seu início. E um ou mais aspectos do acordo contratual, como claramente demonstra os documentos do Facebook, dão aos usuários razões legítimas para se preocupar e ficar cauteloso quanto aos mesmos. Decidir não participar, ou optar por não fazer parte deste contrato social pode ser uma maneira de evitar ou mesmo contestar tais problemas, mas ao fazê-lo você estará perdendo oportunidades oferecidas por aplicativos de internet cada dia mais úteis e populares e, mais importante ainda, faz pouco ou nada para questionar, desafiar ou melhorar tais políticas. Ao invés de nos excluirmos disso, podemos nos engajar alternativamente a estes novos sistemas sociais, buscando vantagens nestas oportunidades e permanecendo críticos, ao mesmo tempo, quanto às limitações dos contratos sociais, e defendendo melhorias. Este é o caminho que busco e defendo, e é o que tento passar aos meus alunos, tanto nos níveis de graduação e pós-graduação.
“O Facebook apoia operações de vigilância e hegemonia”
O Facebook tem sido apontado por muitos analistas como um catalisador de insatisfações sociais ao redor do mundo. Qual é, de fato, a importância desta ferramenta no mundo atual?
D.J.G. – Esta é uma ótima questão, especialmente quando consideramos os acontecimentos dos últimos anos. Como sabemos, a mídia social tem sido creditada como fator contribuinte de ativismo social e transformações políticas, como a Primavera Árabe, quando o Twitter era notório (principalmente pela mídia internacional) por sua habilidade em nos transmitir notícia dos eventos em tempo real, ou o Facebook, o qual foi declaradamente utilizado para mobilizar manifestantes envolvidos no Movimento de Ocupação dos Estados Unidos, assim como nos protestos de Julho de 2013 no Brasil. Não tenho dúvidas de que tais ferramentas tecnológicas – a internet, aplicativos de mídia social, e outros dispositivos – foram úteis para a organização e relato destes eventos importantes. Mas acredito que devemos ser claros sobre o que isto significa.
Primeiramente, me preocuparia sobre uma leitura determinista tecnológica. Embora tais tecnologias fossem efetivas na organização das recentes ações políticas e sociais, não há nada sobre a tecnologia que cause ou determine tal resultado. Em outras palavras, o aparente potencial de democratização da mídia social não produz necessariamente democracia. Na verdade, o potencial de democratização da mídia social é um pouco ilusório. Mesmo que o Facebook tenha sido usado para mobilizar protestos, e de maneira eficaz, o foi principalmente por um emprego assimétrico da tecnologia momentâneo, e não pela tecnologia em si. A diferença importante aqui foi que os protestos chegaram primeiro. As tecnologias do Facebook e Twitter foram utilizadas para mobilizar seus esforços e o fizeram antes das autoridades – governos, polícia, forças de segurança etc. – o percebessem. Mas quando estas o fizeram, a mesma tecnologia foi usada para alcançar os manifestantes.
Em segundo lugar, se você analisa os documentos legais – os termos de acordo de serviço – destes aplicativos sociais de rede, fica claro que seu compromisso com a reforma democrática é limitado. Não devemos nos enganar. O Facebook é uma corporação multinacional, e eles não estão interessados em libertações sociais e políticas, mas sim em ganhos corporativos e resultados finais. Os documentos são retóricos quanto à “transparência” e “participação democrática”, mas somente se estes puderem ser rentabilizados. Apesar do compromisso explícito da corporação em “fazer do mundo um lugar mais aberto e transparente” e sua promessa aos usuários de alimentar e apoiar processos políticos transparentes, deve-se lembrar que o Facebook é, em termos de sua própria estrutura de governança, uma ditadura. Sem dúvida uma ditadura benevolente, onde a elite governante, ao menos a princípio, comprometeu-se à transparência, abertura, e participação popular. Mas não deixa de ser uma ditadura. Ao invés de oferecer um processo verdadeiramente democrático, o Facebook instituiu o que Joseph Bonneau intitula “democracia teatral”. Orgulhosamente exibe todos os sintomas de participação democrática enquanto mantém um controle rigoroso e virtualmente autoritário sobre todos os aspectos do processo social.
Em terceiro lugar, e para piorar a situação, a declaração de privacidade do Facebook indica que a empresa irá cooperar integralmente com as autoridades. Em particular, a empresa diz a seus usuários que pode usar qualquer informação quando legalmente requerida, como um mandado de busca ou inquérito. Consequentemente, o Facebook explicitamente concorda em cumprir com a lei nos Estados Unidos e em qualquer outro lugar. Isto tem ao menos duas consequências correlatas. De um lado, expõe todos os usuários à vigilância pela aplicação da lei dos Estados Unidos, não pela política ser fraca, mas sim pelo fato de os padrões para obtenção de mandados judiciais e intimações serem tão baixos dentro da lei federal americana. Por outro lado, esta política apoia e tem sido usada para justificar a cooperação do Facebook com outros governos nacionais. Autoridades israelenses, por exemplo, recentemente obtiveram acesso a dados do Facebook os quais foram usados para compilar uma lista negra de manifestantes pró-palestinos, a fim de se restringir seus acessos a viagens. E o conteúdo de perfil e número de IP de ativistas curdos foram bloqueados, presumivelmente por um pedido do governo turco. Embora o Facebook se apresente como “criador de um mundo mais aberto e transparente”, também trabalha e apoia as operações de vigilância e hegemonia de governos do mundo real.
“Reproduzimos uma discussão de mais de 2000 anos”
O que o crescente uso das redes sociais nos diz sobre a sociabilidade contemporânea? Nos comunicamos mais e melhor ou estaríamos perdendo a dimensão do Outro, transformado em códigos binários?
D.J.G. – Esta é outra questão muito interessante e importante. Nos estudos sobre comunicação, ao menos como tem sido praticada na América do Norte, há uma tendência a preferir interação humana cara-a-cara como fórmula padrão de sociabilidade. Em outras palavras, a situação interpessoal e intersubjetiva do discurso falado em ambientes físicos, onde o indivíduo está em presença de outrem é compreendido como o estado natural das relações e, portanto, frente a todos os outros modos de comunicação, especialmente a mediada, são julgadas e avaliadas. E sua pergunta é formulada e procede desta compreensão. Então embora seja uma questão importante e interessante, por si só endossa um ponto de vista e um conjunto de pressupostos que creio ser necessário debater e analisar. Esta é uma área de pesquisa que tomou grande parte do meu tempo e esforço. Entretanto, ao invés de revisar tudo isto, deixe-me dizer duas coisas que podem ajudar a explicar meu trabalho nesta área.
Primeiramente, embora a comunicação cara-a-cara seja considerada natural, condição padrão de qualquer forma de interação mediada, é na verdade um pós-efeito ou produto derivado da comunicação mediada. Nos meios da teoria das comunicações, por exemplo, somente temos comunicação cara-a-cara após desenvolver a teoria da comunicação mediada. O modelo básico de comunicação, modelo matemático de Claude Shannon e Warren Weaver, fora inicialmente desenvolvido para sistemas de comunicação. É somente após este trabalho inovador, com tal tecnologia, que o conceito de comunicação cara-a-cara é desenvolvido como tal, e como comparação ao que inicialmente ocorre pela mediação técnica. Observamos algo similar na tecnologia de gravações. O conceito de “música ao vivo”, que é considerado por muitos como a primeira e, portanto, forma privilegiada de música, foi somente conceitualizada após a invenção da gravação do som. Deste modo, então, é na verdade a reprodução tecnológica que precede o próprio conceito de um evento ao vivo. Em última análise, tudo enraíza-se em Fedro, de Platão, que termina com o que é o primeiro debate gravado sobre tecnologia da comunicação. Durante o tempo de Platão, a nova mídia não era, obviamente, computadores e internet, mas sim a escrita. E Sócrates expõe sua preocupação que a arte ou techne (a origem grega da palavra tecnologia) de escrever, como um novo modo tecnológico de gravar e comunicar a informação poderia prejudicar a memória e o discurso presencial. Para aplicar este termo à sua questão, Sócrates preocupou-se sobre a nova tecnologia, que esta poderia ter um efeito adverso na sociabilidade humana. Então, novamente, o que observamos neste diálogo é uma espécie de inversão crítica. Como Jacques Derrida inicialmente pontuou, o privilégio logocêntrico (o privilégio do discurso falado em interações sociais presenciais) é possível e delimitada pela tecnologia da escrita, que parece ameaçá-la por fora.
Em segundo lugar, e partindo do que foi dito, creio que a tarefa principal não seja responder a esta pergunta diretamente, mas sim desafiar e até modificar os termos da questão. Enquanto continuarmos desta forma – enquanto continuarmos a nos questionar se e até que ponto a tecnologia nos permite comunicar mais ou melhor –, não progrediremos muito do que encontramos no Fedro de Platão. Estaremos, de fato, reproduzindo uma discussão que já possui mais de 2000 anos. O que é preciso, acredito, é uma nova maneira de questionar sobre a tecnologia e seu impacto sobre nossa vida social. Faz-se necessário um novo conjunto de questões que podem levar a novas possibilidades e direções em pesquisa social. E isto é precisamente o que tenho buscado fazer em todos os meus trabalhos, se o objeto de investigação é o vídeo game, ou a mídia social, remixagem ou mashup, ou inteligência artificial.
“Redes sociais desafiam a ideia de hegemonia do Estado”
O senhor é otimista quanto a uma sociedade da cibercultura?
D.J.G. – Creio que responderia a esta questão na afirmativa, mas com alguma qualificação. Sou admitidamente otimista sobre as oportunidades e desafios da interação social online e da cibercultura. Mas isto não significa que eu queira celebrá-la ou promovê-la como um benefício inquestionável e/ou não qualificável. Minha posição e abordagem é sempre crítica. Acredito que devamos empreender estas oportunidades de maneira completa, mas devemos fazê-la de modo a manter uma distância crítica. Acredito que o que eu queria dizer é que não sou nem pessimista, nem otimista, o que, como deve saber, é um dos pares clássicos binários que estruturam tanto o pensamento ontológico e a avaliação moral. Como Nietzsche, estou menos preocupado a descobrir o que é bom ou ruim na cibercultura, e mais interessado em aprender sobre como pensar fora do quadrado – isto é, jenseits von gut und böse ou “para além do bom e ruim”. Minha preocupação, portanto, não é fazer julgamentos sobre o que é bom e o que é ruim baseado em pressupostos avaliativos que permanecem não ou sub-questionados. O que eu prefiro fazer é investigar tais pressupostos fundamentais que já nos ditam os termos pelos quais nós organizamos as coisas em bom vs. ruim, ou pessimista vs. otimista. Minha preocupação, portanto, não é pontuar julgamentos morais sobre tecnologia e interação social, mas sim questionar sobre a condição da possibilidade de se fazer tais julgamentos. Isto é, se você se recorda da filosofia crítica de Kant, precisamente o que é “criticismo” e “pensamento crítico”.
O que a cibercultura pode trazer de novo nas relações entre cidadãos e governos?
D.J.G. – Deixe-me responder de duas maneiras. Primeiramente, uma espécie de paradoxo. Por um lado, a internet, aplicativos de mídia social, soluções governamentais tecnológicas (e-govenment), e dispositivos móveis de todos os formatos e tamanhos surgem para nos proporcionar novas e incomparáveis oportunidades de participação democrática e transformação social. E há uma boa evidência já disponível para apoiar esta reivindicação. Muitos dos eventos sociais e políticos transformadores dos últimos cinco anos – a Primavera Árabe, o Movimento de Ocupação, os protestos na Turquia, Brasil e Ucrânia – todos apontam para caminhos os quais a tecnologia se faz presente, com efeitos em estruturas sociais e organização política. Isto não é novo. Em outras palavras não é algo limitado à mídia digital. Esta é uma das lições importantes da história da tecnologia. A Europa moderna e o Estado moderno, como o conhecemos, são, em grande parte, um produto da tecnologia de impressão, que permitiu novos desafios democráticos aos poderes da Igreja Católica e as monarquias estabelecidas. Mas, por outro lado, as mesmas tecnologias foram usadas e sempre o serão para reforçar sua posição e consolidar seu poder. Isto está claramente evidenciado pela vigilância do estatal e corporativa. Embora o Facebook tenha sido um instrumento na ajuda da organização de movimentos sociais e protestos recentes, a organização também mantém uma base de dados massiva de todos os seus usuários e irá, quando requisitado, alegremente compartilhar estes dados com agencias governamentais, forças de segurança e a polícia.
Em segundo lugar, embora seja interessante, não é necessariamente, acredito eu, o aspecto mais importante do que você perguntou. O que considero importante aqui não é o modo que o Facebook e outras formas de interação social desafia ou apoia o aparato social existente. Ao contrário, o que acredito ser interessante é a maneira com a qual os aplicativos como Facebook desafiam a simples ideia de hegemonia do Estado por si só. Em outras palavras, a questão é, para mim, não o fato de o Facebook poder transformar o relacionamento entre cidadãos e os governos, mas sim, a maneira pela qual desafia os conceitos de “cidadão” e “governo”. O que vejo acontecer com o Facebook e aplicativos similares é o começo de um novo experimento social, que chamo “contrato social 2.0”. Minha preocupação, portanto, não é “como o Facebook está mudando os termos da relação política entre cidadãos e governo?”. Meu questionamento é mais fundamental: “Como aplicativos de mídia social, como o Facebook, estão mudando a produção de políticas modernas e a ordem social?”
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Fagner França é jornalista