Há uma [duas] semana, a Corte de Justiça Europeia tomou a mais complexa decisão na encruzilhada entre liberdade de expressão e privacidade dos tempos digitais. Nessa, estabeleceu que para toda a União Europeia passa a existir online o “direito a ser esquecido”.
Em pauta estava o caso do espanhol Mario Gonzalez, que, em 1998, teve um imóvel leiloado para o pagamento de dívidas. À época, sua história foi contada pelo diário La Vanguardia. Digite seu nome no Google e, até há pouco, entre os primeiros resultados estavam duas pequenas matérias relatando o episódio. Para Gonzalez, a vida era um eterno explicar-se. “Essa história”, disse ao tribunal, “não representa mais quem sou.”
A decisão é complexa porque o tribunal optou por estabelecer uma regra geral. Se atender a determinadas condições, agora é lei nos 28 países membros: qualquer cidadão pode pedir ao Google ou a outro sistema de busca que apague links que a mencionam em caso de a informação ser “inadequada”, “irrelevante” ou “desatualizada”. Se, porém, a informação for de interesse público ou se o autor do pedido for pessoa pública, a nova regra não vale.
O esforço, para as empresas, é enorme. Podem optar por acatar todos os pedidos de remoção que receberem, o que em algum tempo tornaria as buscas irrelevantes. Uma segunda opção é formar um time de funcionários responsável por avaliar cada caso. É tempo e gente: estar no ramo das buscas ficou mais caro. O terceiro caminho é pelo software que, com inteligência artificial, terá de fazer o filtro. Difícil.
A decisão é complexa, também, porque lida diretamente com dois direitos humanos essenciais em conflito. O da liberdade de expressão e o da privacidade para quem não é pessoa pública. Antes da internet, notícias sobre gente pacata ficavam esquecidas nos arquivos de papel. Não era preciso apagar nada para aquilo nunca mais incomodar o sujeito.
Corte criou novas questões
A realidade mudou. Há uma década, um tribunal brasileiro pôs on-line um sistema poderoso de busca em seus processos. Um desavisado teve a ideia de buscar pelo termo HIV. Teve em resposta a lista das pessoas que haviam entrado com pedidos judiciais para ter acesso ao coquetel de remédios para tratamento de Aids. Uma lista, essencialmente, de todos os pacientes do estado. (Os critérios de busca foram alterados posteriormente para evitar este tipo de uso.)
Buscas em tribunais, porém, permanecem úteis. Buscas em geral, aliás, são extremamente úteis por poderem mergulhar sem freios na massa de dados que há na rede. Comece a limitar demais o acesso a estes dados e uma das maiores invenções já criadas cai por terra. E, tecnologicamente, a solução é apenas parcial. O Google já censura seus resultados em países como a China, poderá fazê-lo com outros critérios na Europa. Fazer seu computador em Paris passar por uma máquina em território americano não é difícil, e o que tiver de ser achado seguirá sendo achado. Dificulta mas não torna impossível.
O maior problema ainda é que a tecnologia anda rápido, mas nossos cérebros e nossa cultura, não. Somos gente do século 20 com um mundo em mudança acelerada. Mudanças causam sofrimentos reais. Tentar diminuí-los é o foco da Corte. Mas o que é “informação adequada”? Em quanto tempo uma informação se torna “irrelevante”? Em que momentos uma pessoa pública tem direito a privacidade? A fita de sexo da atriz fica e a da vizinha sai? Dependerá, sempre, de caso a caso.
Com boas intenções e encarando um problema por demais real, a Corte não o resolveu. Criou, isto sim, novas questões. Talvez a solução passe por elas. Mas há um mérito: uma instituição de peso ao menos reconheceu o óbvio. Que o problema existe.
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Pedro Doria, do Globo