No novo e deletério padrão comportamental que surfa nas ondas da pós-modernidade, os profissionais da imprensa e as figurinhas carimbadas das mídias audiovisuais despontam, lépidos e fagueiros, como autênticos deuses nesse redivivo Olimpo cibernético. Como protagonistas ou coadjuvantes, animadores ou prestímanos, monopolizam o imaginário da plebe mediante o idiotizante discurso mediático, exacerbado pela parafernália digital, e a não menos sofisticada máquina publicitária especializada em enrolar e vender gato por lebre.
Um bom cachê e vê-se gente disposta a fazer e a anunciar qualquer coisa. Roberto Carlos, por exemplo, tão cioso e intransigente em defesa de sua privacidade, não se constrange em propagandear a excelência de uma marca de carne que teve seu nome associado à doença da vaca louca. Mais feio ainda faz o ex-craque, e agora outra vez roliço Ronaldo Nazário, ao associar seu nome a um antro de corrupção como a Fifa, e a uma Copa do mundo que vem fazendo a imagem do país passar por vergonha atrás de vergonha, com a hiperexposição de nossas mazelas por parte da imprensa internacional.
Aliás, sem querer ensinar nada a nossos brilhantes publicitários, que empilham ano após ano troféus entre os melhores do mundo, há nomes aí que já anunciaram tanta coisa, como Pelé, Luciano Huck, Faustão, e até as belas Gisele Bündchen e Ivete Sangalo, que já viraram arroz de festa, ou seja, já não inspiram confiança e credibilidade. Se bem que quando se sabe que atores de segundo categoria, como Rodrigo Faro, e apresentadores parlapatões como Milton Neves faturam milhões com o tal de merchandising, e que a Friboi aumentou 30% no faturamento graças a campanha publicitária com Toni Ramos, que de repente virou expert em carne (por sinal a mesma que levou o rei Roberto a deixar de ser vegetariano), quem sou eu para dar o contra.
Furor reprimido
A verdade é que, deslizes e constrangimentos à parte, esse pessoal ungido pelos deuses está na sua e faz muito bem em faturar uma grana extra, ainda que seja às custas da ignorância e boa fé da patuleia. O problema é que parece não haver limite para o assédio e a blitz de convencimento, explorados à exaustão, em que tanto as coisas mais importantes como as mais prosaicas, tipo culinária e futebol – este, por sinal, no embalo da Copa do mundo, definitivamente consagrado como a quintessência do entretenimento e do showbiz – são impostos como se o consumismo desenfreado não fosse uma faca de dois gumes. Para o consumidor, que perde o senso das coisas, e para a própria política econômica governamental, que precisa ficar de olho nos índices de inadimplência.
Seja como for, aos tecnofóbicos e incomodados com a verdadeira abdução compulsória que caracteriza nossos tempos, só resta deixar de ver televisão, de ler revistas, jornais, ou se refugiarem nalgum fim de mundo onde não haja Wi-Fi, banda larga e a velha e ainda insubstituível tomada. Ou seja, melhor se conformar e relaxar, que ninguém é de ferro.
Não que essa irresistível e irreprimível escalada tecnológica represente um retrocesso, ou algo a lamentar, muito pelo contrário. Entre os prós e contra nesse recente e vertiginoso processo evolutivo, os aspectos positivo ganham de goleada. Não apenas em termos do ganho em conforto e melhorar qualidade de vida, como pela facilidade e abundância de recursos e informações para dar trato às bolas, ou nem isso, para anuir e aceitar bovinamente o que nos é ofertado em embrulhos pra lá de sedutores. Para gerações acostumadas a dizer amém a tudo, condicionadas a seguir convenções arbitrárias e normas que regem um estado de coisas em que o grosso do formigueiro humano padece na miséria e repressão, mais do que inclusão social, o advento da internet dá vazão a um furor contestatório historicamente reprimido, que tem incomodado e às vezes infernizado a vida dos poderosos.
Reserva e desconfiança
Esse traço benigno da era cibernética se descola e redime o caráter, por enquanto eminentemente quantitativo, superficial e narcisista, que domina a chamada blogosfera, mormente as redes sociais, em que pontificam leviandades e maledicências disseminadas livre e, às vezes, criminosamente, como no caso da dona de casa barbaramente linchada no Guarujá por conta de boatos infundados lançados na internet.
Nesses tempos de mudanças abruptas e profundas, em que mal dá tempo para acompanhar as transformações, a interatividade se alia a defasagem cultural para promover as distorções e aberrações que caracterizam o mundo virtual, entronizando uma nova ordem comportamental em que as antigas noções de ética e moralidade passam para o segundo plano. E isso tanto no sentido de honestidade, integridade e responsabilidade na conduta pessoal, princípios claramente desvalorizados na era cibernética, como pelo estímulo que representa o estigma da impunidade e a própria condescendência e glamourização, por parte da mídia, dos espertalhões que se locupletam graças às mamatas de nosso mais do que camarada Código Penal.
Como se não bastasse essa, digamos, paciência de Jó com desmandos e delitos de toda natureza, a grande mídia, cuja tarefa primordial é proteger e defender os interesses na sociedade, não só se acostumou a transigir como se acomodou em meramente reproduzir os fatos e notícias, sem cobrar ou acompanhar o desdobramento do que é publicado. Os escândalos se sucedem, os malfeitos denunciados, mas logo somem dos noticiários, favorecendo os implicados, que não demoram a usufruir da velha e boa impunidade que faz a fama do país. Em suma, nem sombra do jornalismo investigativo e da imprensa combativa de outros tempos, que podia pecar por excesso, mas nunca por omissão, acomodação e leniência, como acontece agora.
Daí, talvez, a sensação de decadência e mesmo de falência dessa imprensa tecnicamente turbinada, mas ao mesmo tempo emasculada, cada vez mais distante da missão de porta-voz dos anseios da sociedade. Em parte, por estar em poder de grupos com antecedentes e interesses nem sempre ilibados, que em função disso, são encarados com reservas e desconfiança mesmo quando desempenham seu trabalho corretamente. Trabalho este depreciado por conta do engajamento implícito a determinadas causas e preferências que transparecem em linhas editoriais historicamente comprometidas com a elite e as classes dominantes. E com o próprio patrimônio, é claro.
Intercâmbio sem intermediários
Nesse sentido, a crítica e a oposição sistemática ao governo petista só não é mais forte e incisiva por conta da percepção de que, além de não haver clima para isso, com a popularidade de Dilma e Lula ainda nas alturas, as alternativas estão longe de animar. Ainda mais depois da descoberta do grandioso esquema de propinas no metrô paulistano, ao longo de três mandatos de governo estadual tucano.
Por estas e outras, não deixa de ser frustrante que em plena explosão tecnológica dos meios de comunicação, o desempenho da imprensa e da mídia em geral deixe tanto a desejar, em matéria de profundidade e conteúdo. A imprensa escrita, cada vez mais impregnada de colunistas e escribas manjados na praça, cujas perorações e dissensões quase sempre inócuas, estão longe de produzir efeitos práticos, ou seja, direcionar as chamadas forças vivas da sociedade no sentido de colocar o país nos eixos. E as demais mídias, ainda mais dispersas e comprometidas com os valores fúteis e superficiais que predominam na era cibernética, em que o bom gosto e o bom jornalismo são solenemente sacrificados em nome do lucro e da audiência.
Salta à vista que a televisão brasileira, de longe a mais popular e influente no universo midiático, segue longe de contribuir efetivamente para a necessária politização e conscientização da população. Além da falta de programas de fundo social e educativo, os noticiários – carros-chefes na audiência – carecem de intérpretes e editorias que possam traduzir e dimensionar adequadamente os fatos. Apenas informar, seguir assepticamente o protocolo, como o Jornal Nacional da Globo tem como norma, já não satisfaz a telespectadores cada vez mais ligados e conectados com os acontecimentos, que cada vez mais se valem das redes sociais e canais interativos para um intercâmbio de opiniões e ideias como nenhum veículo de informação é capaz. Um intercâmbio sem intermediários, de repercussão instantânea e cuja capacidade de mobilização não se pode subestimar, como se viu nas jornadas que agitaram o país há um ano.
Falta de ousadia
Pode não parecer, mas grande parte da rejeição que sofrem veículos tradicionais da imprensa, entre as quais a própria Rede Globo, do alto de sua hegemonia, vem deste menosprezo à inteligência e sensibilidade de seu público. Se a indigência cultural da grande maioria da população ainda garante índices de audiência satisfatórios, por outro lado, isso não impede a consolidação da imagem pouco lisonjeira associada ao império construído por Roberto Marinho. Nada que balance a sua enorme liderança, mas que, sem dúvida, incomoda e exige muita atenção e competência no sentido de manter uma programação capaz de se sobrepor a rótulos incômodos, como filhote e aliada da ditadura.
Para sorte das grandes redes e grupos oligopólicos, os apelos tecnológicos e o hábito arraigado por décadas a fio, têm sido mais forte que a rejeição. Tanto é que o ranking dos mais importantes e influentes veículos de informação no país permanece inalterado. A Rede Globo continua firme e absoluta na liderança no segmento mais importante e rentável, a televisão, e também não faz feio na imprensa escrita, com o tradicional O Globo e a revista Época se mantendo entre os preferidos do público fiel ao jornalismo formal. Mas o desgaste de antigas fórmulas e nomes é evidente, principalmente no que tange a televisão, em que certos setores clamam por renovação, como nos programas de auditório e nas transmissões esportivas.
Se o desgaste e o envelhecimento de fórmulas e nomes que, por décadas, monopolizaram a imprensa e outros setores da mídia, como no próprio meio publicitário, explicam em parte a mesmice e a monotonia que grassam nos meios de comunicação, a falta generalizada de ousadia e criatividade das publicações, programações e campanhas publicitárias, parece ser o reflexo do garrote editorial e econômico imposto às redações e agências mais importantes, em nome da lucratividade.
Briga ferrenha
Os cortes de pessoal, a substituição de profissionais qualificados e experientes por principiantes mais em conta, assim como o próprio fechamento de publicações de prestígio porém deficitárias, foram a tônica dos últimos anos. O que explica também a proliferação de articulistas e colunistas de todas as matizes na imprensa em geral, gente sem vinculo empregatício e às vezes sem qualquer remuneração recrutados para compensar o enxugamento das redações.
Tal expediente pode estar quebrando galho dos veículos mais importantes, que dispõem de colaboradores às pencas para rechear suas páginas e programações, mas como tudo que é exagerado acaba cansando, a substituição de matérias in loco e investigativas por resenhas longas e cansativas, dá mostras de ser um verdadeiro tiro no pé. Pelo simples fato de que artigos e crônicas não são jornalismo. Podem ter acabado com a exigência do diploma, com o status de curso superior e tudo mais, mas daí a taxar de jornalismo qualquer texto, comentário ou arrazoado que se publique, ou chamar de jornalista escribas ou colaborador recrutado para encher linguiça, é avacalhar de vez com a profissão.
Exemplos nesse sentido, aliás, não faltam. Nota-se até um prazer mórbido nas maledicências contra a profissão mesmo por parte de quem milita no ramo, como se seu aviltamento fosse a causa principal da decadência e o desprestigio da imprensa nativa aos olhos da opinião pública. Mas não é exatamente o jornalismo que está em crise. Com a velha guarda cooptada e as novas gerações subordinadas a diretrizes e interesses patronais conflitantes com o papel que lhe compete, a imprensa se vê privada do que tem de mais sagrado e importante: a credibilidade.
É triste ver tantos profissionais qualificados e de renome convertidos em pau mandados, quando não subaproveitados ou simplesmente descartados, por conta da economia burra que vai transformando redações outrora admiradas em verdadeiras repartições públicas. Com direito a crachá e tudo mais.
Plim, plim!
PS. Diga-se o que quiser sobre a reputação da grande mídia, mas a verdade é que quando a dita-cuja quer mostrar serviço, o que infelizmente só acontece em ocasiões especiais, é capaz de coisas admiráveis. Como promete ser a cobertura da Copa do Mundo, cuja abertura a outras emissoras, quebrando o monopólio da Globo, vai permitir a realização de um sonho antigo dos amantes do futebol, privados de ir aos estádios: optar pela transmissão que mais lhe agrade. A briga promete ser ferrenha, principalmente entre os medalhões da Globo e SportTV e a especializada equipe da ESPN.
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Ivan Berger é jornalista