Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Imprensa e população perante o Mundial

Algo que sistematicamente me surpreende nessas semanas que antecedem a Copa de Mundo de futebol no Brasil é a dissonância entre os comentários apresentados pelos telejornais e programas informativos e o comportamento das ruas. De um lado, a pujança de falas que tangenciam de forma surpreendentemente negativa slogans do tipo “Pra frente, Brasil”, cujas origens fundamentam-se em tempos que possuíram o equívoco e a tirania como mote; de outro lado, determinada apatia ou mesmo crítica mais voraz ao pleito esportivo. Desconheceriam nossos apresentadores de televisão o comportamento da sociedade para a qual eles se dirigem em seus programas? Sem dúvida, se o referido programa fosse de entretenimento ou algo do gênero, seu titular teria condições de apresentar determinado assunto conforme critérios particulares ou presos a certo nicho de audiência. Porém, como tratamos aqui de telejornais, tal ação surge como incompreensível.

É inegável que ao longo dos anos, num comentário superficialmente sociológico, o futebol assumiu em nosso país o papel que em tese seria de responsabilidade da classe política ou econômica. Assim, a “pátria de chuteiras” (na conhecida expressão de Nelson Rodrigues) recebia como retorno uma sociedade por completo maravilhada como o evento e capaz de comportamentos impensáveis em seu leito original: veste-se o conjunto de cores nacionais, canta-se o Hino Nacional, grita-se o nome do país como jamais se ouve ou ouviu. Mas, apenas nessas ocasiões; fora delas, fora de um campeonato mundial de futebol, a resposta sempre fora o silêncio. O brasileiro apenas se transforma em brasileiro em uma Copa do Mundo – numa frase popularmente conhecida. Entretanto, no momento em que o dito campeonato se realiza no país, as reações são de uma apatia perene e nosso telejornalismo, como que desejando o resgate a qualquer custo de um comportamento pretérito, entra na mais absoluta distância do telespectador.

Imprensa nega as aspirações populares

Evidentemente, explicações surgem dos mais diversos meios. Porém, no último dia 26 de maio, no programa Estúdio I, da GloboNews, deparamos com um comentário surpreendente de Marcelo Balbio e Felipe Pena: que a população não enfeita as ruas e demonstra sua “paixão” por temer reações ou comentários jocosos de outros segmentos sociais que criticam a maneira pela qual foram encaminhados os trabalhos para a realização do Mundial no Brasil. Em outras palavras, a “paixão” é contida por uma fração qualquer da sociedade que não concorda com a Copa do Mundo aqui, conforme os apresentadores. Dando sequência, os mesmos senhores informavam que, no final de tudo, o brasileiro torceria pela equipe – como acontecera em 1970, em plena ditadura militar, fato lembrado pela apresentadora principal, Maria Beltrão.

Noves fora a melhor das intenções de nossos apresentadores, em momento algum os mesmos consideraram o abismo que separa o gosto pelo futebol e a provável torcida pelo time canarinho, de um lado, e a crítica ao número sem fim de superfaturamentos dos estádios e diversas obras noticiados cotidianamente pela mesma imprensa, de outro lado. Dito de maneira distinta, em momento algum foi levado em conta que a sociedade torce pelo time, mas critica o governo – e a forma para se criticar o governo é exatamente agir da mesma maneira que se faz em todas as ocasiões que, em tese, deveriam demonstrar civismo, ou seja, a mais plena apatia. Pena os bem intencionados comentadores do programa não perceberem a dicotomia. O curioso nisso tudo é ver a imprensa brasileira assumindo um papel que, há tempos, fora dos ideólogos do regime militar e, em plena concordância, negarem as aspirações populares.

Assim, a única coisa que transformava o brasileiro em um ser cívico, dilui-se na clareza do dia… exceto para o telejornalismo, é claro.

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Antonio Marcelo Jackson F. da Silva é doutor em Ciência Política e professor da Universidade Federal de Ouro Preto