Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Novos cenários da notícia

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Na edição anterior da Revista de Jornalismo ESPM, 23 páginas foram ocupadas por uma pauta de debate em torno da indagação “Para que serve o jornalismo?” – questão considerada crucial nas discussões sobre os papéis e condicionamentos impostos ao jornalismo pelas novas circunstâncias, relações de poder e estruturas sociais, no mundo globalizado por tecnologias de difusão que eliminaram o intervalo entre o acontecimento e a notícia. Nesse intervalo estava o poder tradicional do jornalismo, como dono da notícia. E é nos cenários desse mundo novo que a pergunta se repete, com novos sentidos: Para que serve o jornalismo?

Na edição passada, o tema foi tratado em seis textos autorais com análises aprofundadas, aos quais se somaram 55 depoimentos, com pontos de vista de personagens ligadas ao jornalismo, como profissionais, empresários ou consumidores. A diversidade de opiniões, entretanto, não esgotou as possibilidades de divergência que a complexidade da pergunta contém. E, para que o debate se amplie, publicamos a seguir a contribuição de Manuel Carlos Chaparro, em artigo que aborda o poder de interferência que as fontes construíram e exercem sobre os processos e os modos de fazer jornalismo.

À guisa de resumo introdutório

O “agir” que “diz”; o “dizer” que “transforma” – Naquele 11 de setembro de 2001, correu mundo, em tempo real, a imagem do avião sob controle terrorista no momento da colisão com a segunda das torres gêmeas atingidas. Era o ápice do ataque ao World Trade Center. A primeira torre, já em chamas, fora atingida momentos antes por outro dos quatro aviões sequestrados para a mais espetacular ação terrorista da história política.

Esse primeiro avião ninguém viu. Teve, porém, importância decisiva na estratégia comunicacional do acontecimento. Na função de irresistível pré-pauta, atraiu as redes mundiais de televisão ao local dos fatos. E, quando o segundo avião surgiu em mergulho de colisão, já lá estavam as câmeras no papel de olhos do mundo. Em mãos profissionais, captaram e difundiram, em instantaneidade planetária, imagens e sons do ataque no exato momento em que as coisas ocorriam. Assim, sem intermediações narrativas, as tecnologias de difusão transferiam, para a imaterialidade da rede, o desenrolar material do conflito.

A notícia, âmago do acontecimento, soltava-se dele. Ganhava sentidos e poderes de ação discursiva devastadora. E, nos fluxos da instantaneidade, acima das circunstâncias de tempo e lugar, globalizaram efeitos que de imediato mudavam o mundo.

Espaço e linguagem dos conflitos

Ao tornarem possível a eliminação do intervalo entre o acontecimento e a notícia – ou seja, entre a materialidade dos fatos noticiáveis e a sua difusão jornalística em tempo real – as tecnologias da globalização transformaram a notícia na mais poderosa arma de intervenção no mundo real das pessoas.

Com a possibilidade de difundir pelo planeta os acontecimentos no momento em que materialmente ocorrem, qualquer que seja o local e a hora em que ocorram, tudo muda no jornalismo. Os auditórios são universais, o tempo é o da instantaneidade. E pelas redes do espalhamento universal e instantâneo corre a energia da informação e do conhecimento que altera, ou pode alterar, a lógica das ações e interações que organizam as relações humanas, as relações de poder, as relações negociais e, até, os mecanismos culturais.

No mundo novo, a notícia evadiu-se das redações tradicionais. Instalou-se no âmago dos acontecimentos jornalisticamente relevantes. E dos acontecimentos se liberta quando, na globalizada difusão instantânea, passa a ser expressão discursiva do agir institucional, nos conflitos que movem a atualidade.

A difusão planetária em tempo real aglutina o “acontecer” e o “difundir” num “todo” acional. E esse “todo” amplia extraordinariamente as possibilidades de os sujeitos sociais agirem e interagirem em espaços alargados pela ausência de limitações, tanto geográficas quanto temporais.

Assim, o jornalismo passou a ter uso tático cada vez mais intenso, em ações decididas e coordenadas pelo saber estratégico dos sujeitos sociais organizados – nos embates da economia como nos da política; nas transitoriedades da ciência como nas ousadias da cultura; na disputa de mentes pelas religiões como nas conquistas e derrotas do esporte; na liberdade das artes como nos saltos da tecnologia; nas opções da guerra como nos movimentos pela paz; nas violências do terrorismo como no “vale-tudo” do antiterrorismo; nas lutas de vanguarda por mudanças como nas teimosias conservadoras dos que nada querem mudar. As ações decisivas são discursivas. Qualquer estudo de desconstrução comparada dos noticiários do mundo atual, nos meios eletrônicos ou impressos, revelará que os acontecimentos da atualidade valem cada vez mais pela subjetividade do que significam, não pelo que são, na materialidade dos fatos que os compõem.

A materialidade objetiva dos acontecimentos pertence às instâncias do lugar e do tempo, onde e quando as coisas se dão. Tem, porém, enorme importância para a estruturação das mensagens, porque na materialidade dos fatos estão movimentos, dramas e protagonismos indispensáveis à boa narração jornalística.

Mas o que em forma de notícia se solta ao mundo, e o transforma, é o discurso, pelo qual, segundo Ricoeur, “o homem diz o seu fazer”. Como fala subjetiva da ação humana concreta, o discurso pertence ao domínio da linguagem, construído por intencionalidades interessadas, em função de motivos.

Pela mira da sociologia, disso trata Manuel Castells, quando nos fala das lutas pelo poder na Era da Informação:

“São lutas travadas basicamente dentro da mídia e por ela, mas os meios de comunicação não são os detentores do poder. O poder, como capacidade de impor comportamentos, reside nas redes de troca de informações e de manipulação de símbolos que estabelecem relações entre atores sociais, instituições e movimentos culturais por intermédio de ícones, porta-vozes e amplificadores intelectuais.”

Nesse texto, Castells, o sociólogo que tão detalhadamente desconstrói e estuda o mundo em mutação na sua mais recente fase, passa-nos um entendimento novo dos efeitos sociopolíticos das tecnologias de difusão. Coloca o poder discursivo dos sujeitos institucionalizados no núcleo das relações complexas da globalização. E os define como usuários competentemente performativos dos fluxos e das redes da difusão instantânea, para o espalhamento planetário dos conteúdos que produzem.

Ou seja: o mundo globalizado é, também, um mundo institucionalizado nas ações, nos interesses, nos discursos. E nas identidades. Um mundo de sujeitos falantes. Logo, um mundo falante, no qual os protagonistas da atualidade usam o jornalismo de forma competente, intencional, para dizer pelo que fazem. E para fazer pelo que dizem.

Fala-se, portanto, de um jornalismo que, no plano narrativo do relato, pouco ou nada tem a ver com o jornalismo dos pressupostos tradicionais, o das redações “donas” da notícia, sobre a qual exerciam, entre outros, o poder de decidir o que, quando e como noticiar.

Esse poder desapareceu. Ou trocou de mãos.

Furacão tecnológico

O que aconteceu, então? Aconteceu a revolução tecnológica que inventou o transistor e o chip (1947), o circuito integrado (1957), os satélites artificiais (o primeiro deles também em 1957), o primeiro computador de grande porte (1958), o microprocessador e a fibra ótica (1971), o microcomputador (1975), o Apple II (1977) – e nas décadas seguintes, em evolução contínua, novas tecnologias convergentes e complementares de comunicação e informação, das quais resultou essa surpreendente realidade a que chamamos de globalização.

Aconteceu que os sucessivos e rápidos saltos tecnológicos do pós-guerra aceleraram os processos de difusão de conteúdos. Como efeito mais importante no jornalismo, tornou-se possível a progressiva redução do intervalo entre o acontecimento e a notícia. Até que esse intervalo desapareceu. E vulgarizou-se a possibilidade de auditórios universais assistirem aos acontecimentos relevantes da atualidade no momento em que ocorrem, qualquer que seja o local, a hora e as circunstâncias em que se deem.

Aconteceu que, com o desaparecimento desse intervalo, os sujeitos sociais organizados logo se aperceberam dos poderes novos que a difusão universal instantânea agregava à notícia. E se apropriaram dela, para a usar como nova e eficaz ferramenta de intervenção discursiva no mundo real das pessoas.

Aconteceu que o jornalismo, como linguagem e atividade de relato e comentário dos fatos e falas relevantes da atualidade, rompeu as fronteiras que o sitiavam nas redações tradicionais (inclusive como mercado de trabalho). E deixou de ser sinônimo de “jornal” para se tornar linguagem e espaço público de intenso uso social, para a realização dos conflitos que movem as sociedades.

Aconteceu que as antigas “fontes jornalísticas”, meramente informativas, sempre tratadas como “objetos” à disposição de repórteres e pauteiros, assumiram deliberadamente a posição de sujeitos jornalísticos, na qualidade de produtores competentes, profissionalizados, de falas e fatos noticiáveis. E fizeram uma revolução nos processos jornalísticos.

É a terceira grande revolução a desorganizar e reorganizar os modos de pensar e fazer jornalismo.

A primeira das três revoluções aconteceu a partir do uso pioneiro do telégrafo pela Associated Press, na Guerra da Secessão. A ousadia da AP abriu portas para a Revolução da Notícia, que se alongou pela segunda metade do século 19. Com o uso do telégrafo, a expansão das agências noticiosas e o crescimento das tiragens viabilizado pela utilização industrial da máquina impressora rotativa, o jornalismo do articulismo cedeu espaços crescentes à notícia, como classe de texto. Nesse período, e graças à influência internacional das agências noticiosas na cultura jornalística, criou-se um estilo novo para o relato jornalístico – o da “pirâmide invertida”, no ordenamento de informações resumidas em textos curtos.

Mais bem informadas por um jornalismo crescentemente noticioso, as sociedades criaram demandas por desvendamento, explicação e debate em torno dos fatos e conflitos noticiados. Na resposta a essas demandas, surgiu a reportagem, no final do século 19. E essa espécie nova de texto marcaria o discurso jornalístico ao longo do século 20, como estilo de escritura preponderante. Foi a Revolução da Reportagem.

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Devido à Revolução das Fontes, o jornalismo está mais uma vez em estado de mutação. Nas relações de poder com as demais forças intervenientes nos processos de informação e análise da atualidade, e em decorrência dos avanços tecnológicos, as chamadas fontes conquistaram, enfim, lugar, competência, respeitabilidade e poderes de sujeitos jornalísticos.

E, com essa nova relação de forças, o jornalismo mudou. Porque o mundo mudou.

Conceitos e preconceitos

A temática deste texto exige espaço prioritário para a questão das fontes – partícipes essenciais dos processos e modos de produção do jornalismo.

Como já referido, a cultura jornalística sempre relegou os informantes de repórteres e pauteiros à condição de “objeto”. E essa condição de subalternidade em relação aos poderosos narradores ocupantes das redações vem desde os tempos de Tobias Peucer, a quem Josep Maria Casasús chama de “nosso primeiro doutor”, por ter sido autor da primeira tese de doutoramento na história do jornalismo.

Peucer teve sua tese publicada em 1690, na Catalunha e em catalão, e nela registra a descoberta de fenômenos aos quais atribui a origem do jornalismo – alguns anteriores ao século 15, quando Gutenberg inventou primeiro os tipos móveis, depois a prensa aperfeiçoada.

Sobre aquilo a que chamou de “relatos”, escreveu Tobias Peucer:

“Cabe ao intelecto o conhecimento das coisas que serão registradas nos relatos públicos. Estas são obtidas por inspeção própria, quando o sujeito é espectador dos acontecimentos, ou por transmissão, quando uns explicam aos outros os fatos que presenciam.”

Curiosamente, Peucer acrescentaria que eram merecedores de maior crédito os relatos públicos resultantes da observação direta do narrador.

A história do jornalismo, porém, jamais caminhou sem as fontes – cujos méritos reconhecidos não vão além dos de informantes a serviço de bons repórteres. Essa “verdade” ganhou até força de paradigma, sintetizado numa frase que fez carreira nos ditos axiomáticos das redações: “Bom repórter é aquele que tem boas fontes”.

Até nas verdades teóricas do século 20, estabelecidas nas melhores universidades por alguns dos mais notáveis pensadores do jornalismo, nenhum espaço de protagonismo é concedido às fontes.

Quase três séculos depois de Peucer, por exemplo, o professor Martinez Albertos produziu, de forma precisa, diria até magistral, a síntese conceitual desse jornalismo amarrado ao passado pelas decorrências socioculturais da atual revolução tecnológica. Na década de 70 do século passado, na primeira fase dos seus estudos sobre gêneros jornalísticos, Martinez Albertos desenvolveu ideias para a definição de notícia – ideias que mais tarde assim resumiu, no seu livro mais influente (Curso General de Redacción Periodística, Madrid, Editorial Paraninfo, 1992):

“Notícia é o relato de um fato verdadeiro, inédito e atual, de interesse geral, que se comunica a um público que pode ser considerado massivo, uma vez que haja sido recolhido, interpretado e valorado pelos sujeitos promotores que controlam o meio utilizado para a difusão.”

As ideias de Martinez Albertos influenciaram estudiosos do mundo inteiro (o autor deste texto se inclui entre esses). E Albertos nos dizia, com a definição acima transcrita, que não havia nem haveria notícia produzida fora das redações e sem a autoria dos jornalistas que nelas trabalhavam.

Para as crenças culturais da época, era uma definição plenamente aceitável. Tão aceitável que, em 1972, o mundo inteiro colocou no altar dos grandes heróis os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein, por terem sido os autores da histórica reportagem sobre o Caso Watergate, ação jornalística que levou o presidente Richard Nixon à renúncia.

Ninguém teve sequer a tentação de homenagear o indivíduo que, agindo como fonte, não apenas recheou de conteúdo devastador a sensacional reportagem, mas também a orientou, com a competência de profundo conhecedor dos fatos e contextos que cercaram o assalto de fins eleitorais à sede do Partido Democrata, localizada no Edifício Watergate.

Com o anonimato protegido pelo pseudônimo “Garganta Profunda”, o então vice-presidente do FBI (Federal Bureau of Investigation), W. Mark Felt foi, na verdade, o principal herói da reportagem. Além de colocar à disposição dos repórteres, de forma organizada, as informações e os conhecimentos que possuía, Felt correu todos os riscos – que não foram poucos nem pequenos.

Novos cenários

Enquanto aceitavam ou simulavam ser “objeto”, as fontes capacitaram-se
para ser sujeitos. Sujeitos jornalísticos – até porque, sem quem faça e diga coisas noticiáveis, não há jornalismo. Nem necessidade dele.

Na qualidade de entes sociais performativamente falantes, os sujeitos sociais a que chamamos de “fontes” pegaram à unha o poder novo que as tecnologias de difusão colocavam à sua disposição. E montaram nesse poder, exercendo-o.

Para o sucesso, investiram em competência jornalística. Além de jornalistas, contrataram estrategistas em comunicação. Treinaram equipes. Com o uso da velocidade na notícia nos dutos imateriais da globalização, aprenderam a articular combinações estratégicas de causas e efeitos; formas e conteúdos; meios, periodicidades e linguagens; públicos, espaços, interesses e expectativas. E fizeram uma revolução, que modificou os modos de produção no jornalismo.

Urge, portanto, decodificar os novos cenários para estabelecer novos conceitos – que provavelmente serão transitórios.

Em jeito de síntese, para estimular discussões acadêmicas e profissionais, apresenta-se a seguir a matriz mínima de um novo quadro de conceitos, para o entendimento dos novos cenários em que o jornalismo existe e atua.

>> a) Novo Conceito de Fonte – A fonte é:

Sujeito social organizado, produtor de acontecimentos e/ou detentor de conhecimentos com irrecusáveis atributos de noticiabilidade.

Sujeito social dotado de saber estratégico para agir e interagir nos espaços da atualidade. E com lugar próprio nos cenários dos conflitos discursivos, nos quais continuamente se reelaboram as relações sociais.

Sujeito social competente no uso pragmático da linguagem, que sabe agir, dizendo, e que sabe dizer ao agir.

>> b) Tipificação da Fonte – Sujeito Jornalístico

— Fonte anônima/oculta – Interessada – Ativa – Detentora de conteúdos relevantes.

— Fonte performativa – Organizada – Geradora e difusora de conteúdos relevantes (fatos, falas, saberes) – Sujeito social falante, estrategicamente competente.

Perderam importância, ou desapareceram, as fontes passivas, meramente colaborativas.

>> c) Novas Complexidades do Jornalismo

— Jornalismo é espaço público confiável e linguagem performativa vinculada a valores, para o dizer e o fazer dos sujeitos sociais, nos conflitos da atualidade.

— Jornalismo é atividade intelectual viabilizadora das macrointerlocuções sociais que movimentam a atualidade, no contínuo refazer do presente.

— Jornalismo é competência sociocultural que viabiliza a realização do direito humano de saber e dizer.

— Jornalismo é atividade profissional segmentada em espaços de competência, para estar presente e atuante em todos os percursos da notícia – da geração, no acontecimento, à detecção e debate dos efeitos, na vida real das pessoas e instituições.

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Os novos formatos e papéis do jornalismo, quaisquer que sejam, terão de fazer parte do mundo novo em mutação. Um mundo no qual, pela notícia, os sujeitos da atualidade – do mais poderoso pai da pátria ao cidadão indígena mais distante – exercem, de forma cada vez mais eficaz, o sagrado direito à informação, que inclui o direito à liberdade de expressão (artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos).

Será isso prejudicial à democracia e à cultura?

Seria preferível uma sociedade em que o poder de dizer pertencesse apenas aos jornalistas?

Talvez a discussão sobre fontes jornalísticas possa começar por aí…

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Manuel Carlos Chaparro é jornalista, profissão que exerce desde 1957, e professor de Jornalismo na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo (ECA-USP)