Nas últimas décadas, pesquisas de intenção de voto tornaram-se tão indispensáveis para veículos de comunicação quanto sempre foram para partidos e candidatos. Aliam o rigor técnico de processos científicos de amostragem à agilidade exigida pela apuração de notícias. Devolvem ao público a opinião pública. Mas, tanto quanto produzem manchetes, provocam dores de cabeça nas redações.
Evitar erros de interpretação nas variações percentuais, elaborar análises mais aprofundadas das tendências e extrair os resultados genuinamente mais significativos de cada levantamento são desafios comuns nem sempre vencidos por quem os encara. Mais do que ter intimidade com números, a proximidade entre jornalistas e pesquisadores facilita a abordagem correta dos resultados.
Nos últimos 30 anos foi a interação entre redação e instituto que ancorou o sucesso da parceria entre Folha de S.Paulo e Datafolha. Respeitando o terreno de cada um, a troca de conceitos técnicos e de interpretações de resultados gera coberturas equilibradas e pesquisas voltadas para colher informações que sejam úteis para a compreensão dos processos eleitorais. Mas nem sempre a relação foi tranquila. Já na estreia, em 1985, houve mais ruído do que informação.
Para analisar alguns dos cuidados necessários na divulgação desses números vale voltar 29 anos na história política brasileira e revolver alguns fatos de uma eleição lembrada por um erro clássico de uso das pesquisas. Revisitá-los à luz da experiência acumulada pode ajudar a destrinchar as sutilezas do processo de transformação das técnicas de amostragem em material jornalístico.
Jânio, a surpresa
Em 15 de novembro de 1985, 201 municípios brasileiros puderam eleger seu prefeito pela primeira vez após a ditadura militar. Em São Paulo, Jânio Quadros (PTB) disputou sua última eleição, vencendo Fernando Henrique Cardoso (PMDB), que debutava em disputas por cargos executivos.
O embate entre o tradicional e um novo ícone da política brasileira foi acirrado durante os quatro meses anteriores ao dia da votação. Ambos alternaram-se numericamente na primeira colocação, mantendo sempre o empate técnico. Eduardo Suplicy, candidato do PT, terminou em terceiro lugar, mas cresceu no final, tornando-se o fiel da balança ao disputar votos no mesmo campo de ação do então peemedebista. Introduziu-se nos últimos dias da campanha de Fernando Henrique o apelo ao voto útil.
Marcada por diversos fatos emblemáticos, essa eleição é lembrada com frequência para exemplificar erros e acertos clássicos do marketing político. Um dos mais marcantes ocorreu durante debate transmitido ao vivo pela TV, quando ao responder à pergunta de Boris Casoy sobre a existência de Deus, Fernando Henrique abriu a guarda o suficiente para que Jânio passasse a disseminar o ateísmo de seu adversário. Um exemplo do uso da campanha difamatória promovida pelos janistas foi a distribuição de panfletos nos cemitérios da cidade, mostrando que um dos candidatos não acreditava que os mortos estavam com Deus. Religião e política viriam a se unir em diversas disputas futuras.
Os institutos de pesquisa também debutavam na apuração das intenções de voto municipais após a redemocratização. Fundado em 1983, o Datafolha atuou em sua primeira cobertura eleitoral. Quis o destino que disputatão emblemática ficasse marcada, acima de tudo, como “a eleição do Jânio, aquela em que as pesquisas erraram”. Mas em que medida os erros foram compartilhados entre institutos, veículos e candidatos? Houve mesmo erros graves?
Cadeira desinfetada
Às vésperas da votação, Fernando Henrique – confiando na vantagem apertada mostrada por todos os institutos – aceitou o convite da revista Veja para que posasse para uma foto na cadeira de prefeito. Havia um acordo para que a imagem só fosse divulgada após o encerramento da apuração. Porém, a foto vazou e foi estampada na primeira página da Folha de S.Paulo no dia da eleição.
Apuradas as urnas, Jânio venceu por uma diferença de 3,4 pontos percentuais, pouco mais de 141 mil votos. Tomou posse com uma lata de inseticida nas mãos e declarou: “Estou desinfetando a poltrona porque nádegas indevidas a usaram”. O episódio folclórico intensificou a má fama das pesquisas.
Para engrossar o caldo dos críticos, a consolidação das enquetes não científicas da Rádio Jovem Pan apontara vantagem de 4 pontos percentuais para Jânio, fato devidamente explorado tanto pela rádio quanto pelos janistas.
Há diversos exemplos de interpretações equivocadas nesse episódio que poderiam ter sido evitadas se houvesse uma familiaridade maior de pesquisadores, jornalistas e políticos com os limites impostos por conceitos estatísticos aos resultados de pesquisas.
Alguns preceitos
É inegável que as pesquisas não captaram totalmente as intenções de voto em Jânio. Apesar de mostrarem empate técnico entre os dois candidatos durante todo o processo e também a ascensão gradativa de Suplicy, roubando votos especialmente de Fernando Henrique, todas mostraram vantagem numérica do peemedebista na última semana de campanha.
Vale lembrar que a divulgação de resultados era proibida 15 dias antes do pleito – herança de uma legislação criada durante o regime militar –, o que levava os jornais a publicarem os percentuais de forma camuflada. A Folha utilizou-se de mapas do zodíaco e o Estadão de charges, como a de um rali entre os candidatos, com os percentuais disfarçados em placas de quilometragem.
Portanto, mesmo com a proibição, as pesquisas continuaram a ser feitas até o final. O último resultado do Datafolha, em pesquisa finalizada um dia antes da eleição, evidenciou um empate técnico apontando 35% para Fernando Henrique, 33% para Jânio e 18% para Suplicy. Nas urnas, Jânio obteve 37,5% contra 34,2% de Fernando Henrique e 19,7% de Suplicy. Apenas a taxa do petebista ficou fora da margem de erro de 3 pontos percentuais.
Como Jânio não havia atingido esse percentual em nenhuma pesquisa anterior, a razão mais provável para a diferença é que tenha havido um número maior de eleitores janistas que se recusavam a responder ou não declaravam seu voto aos entrevistadores.
Durante as últimas semanas de campanha, Jânio bradou a seus eleitores contra os resultados das pesquisas. Isso ajudou a criar um clima de recusa às entrevistas entre parte dos janistas. Ocasionou, provavelmente, um erro não amostral na coleta dos questionários. Ao contrário dos erros amostrais, eles não podem ser mensurados, apenas percebidos e amenizados.
São exemplos de erros não amostrais dados demográficos ou eleitorais desatualizados que se incluídos na elaboração da amostra podem causar distorções. Também entrevistadores maltreinados ou eventos ligados ao tema da pesquisa que atingem parte do universo estão incluídos nessa categoria.
Já os erros amostrais são aqueles que podem ser previstos pelo pesquisador. São inerentes a qualquer processo de amostragem e calculados da relação entre o número de entrevistas e o tamanho do universo amostrado.São preceitos da ciência estatística que, em última análise, determinam a inexatidão das pesquisas eleitorais.
Empate técnico
Havia uma situação real de empate técnico entre Jânio e Fernando Henrique que desaconselhava qualquer prognóstico. O então ministro da Justiça, Fernando Lyra, definiu com perplexidade o erro cometido pela campanha ao tomar conhecimento da vitória de Jânio: “Não acredito!”, disse ao ver os números. “Acho que demos valor desmesurado às pesquisas.”
É o que ocorre com frequência ainda hoje. Pesquisas de opinião têm imenso valor e existem porque não é possível consultar todos os eleitores regularmente. Mas permitem acompanhar de forma apenas aproximada as variações das intenções de voto.
Cada percentual obtido em uma pesquisa representa, na verdade, um intervalo definido pela margem de erro e pelo intervalo de confiança. Em um cenário eleitoral, quando a pesquisa diz que um candidato tem 33%, com margem de erro de 3 pontos percentuais, quer dizer que há grande confiança que essa porcentagem estava entre 30% e 36%, nos dias em que a coleta das entrevistas foi realizada.
Como a última pesquisa do Datafolha apontava Fernando Henrique com 35% e Jânio com 33%, considerada a margem de erro, o máximo que se poderia afirmar, de acordo com os limites da estatística, é que havia grande confiança que a diferença entre as porcentagens de votos localizava-se entre 8 pontos a favor de Fernando Henrique (38% – 30%) e 5 pontos a favor de Jânio (36% – 31%). Era um empate técnico.
A interpretação de “grande confiança” tem uma natureza estatística e mostra que, se os procedimentos forem repetidos várias vezes, no mesmo dia e sob as mesmas condições, em 95 de cada 100 essa estimativa estará correta. Nesse caso, o nível de confiança do procedimento é de 95%.
Esses limites impostos pelo método – ocultados por diversos pesquisadores para vender a imagem de precisão do instrumento – fez com que o Datafolha decidisse arredondar seus percentuais, eliminando as casas decimais. Percentuais com uma ou duas casas depois da vírgula passam a falsa impressão de rigorosa precisão que as pesquisas não são capazes de entregar.
Diante desses conceitos, as chamadas divulgadas pelos jornais nas últimas semanas de campanha mostraram leituras equivocadas. Para citar dois exemplos: o Jornal do Brasil, em sua edição do dia 13 de novembro, dois dias antes da eleição, afirmava em primeira página que “a campanha eleitoral chega hoje ao fim em todo o país, com a confirmação da liderança, em São Paulo, de Fernando Henrique Cardoso (PMDB), que já é quase imbatível e livra quase cinco corpos de vantagem sobre Jânio Quadros (PTB-
PFL)”. Também O Globo, no dia da eleição, dizia em manchete: “Muda o quadro em São Paulo e Fernando Henrique deve vencer”. O primeiro desconsiderou a margem de erro e o segundo desprezou o tempo verbal dos resultados de pesquisas: sempre no passado.
Qual é o lead?
Isso não quer dizer que pesquisas eleitorais nunca apontem o que vai acontecer. Assim comovários erros de interpretação foram evitados, a convivência entre Folha e Datafolha proporcionou análises conjuntas que destacaram resultados internos, de cruzamentos específicos, muitas vezes mais relevantes do que a notícia principal, extraída da chamada “corrida de cavalos”.
Na disputa em primeiro turno pelo governo de São Paulo, em 1998, concorriam Paulo Maluf (PPB) – com vaga garantida no segundo turno, pois obtinha 31% em pesquisa Datafolha feita dois dias antes da eleição –, Francisco Rossi (PDT, 18%), Mário Covas (PSDB, 17%) e Marta Suplicy (PT, 15%). Esta aparentemente fora da briga pela segunda vaga.
Um detalhe destacado no relatório enviado pelo Datafolha à redação chamava a atenção: era a primeira vez que os paulistanos votariam em urna eletrônica. Para isso, precisariam digitar pela primeira vez o número de seu candidato. A informação fundamental para a compreensão da disputa estava, portanto, no cruzamento entre o conhecimento do número a ser digitado, segundo o eleitorado de cada candidato.
O relatório destacava que o desempenho dos eleitores na urna eletrônica poderia definir a segunda vaga e lembrava que apenas 37% dos eleitores de Rossi conheciam seu número, enquanto 56% sabiam o de Covas e 65% o de Marta.
Com matéria escrita por José Roberto de Toledo, nos escritórios do Datafolha, a Folha foi o único veículo a destacar Covas e Marta como prováveis postulantes à segunda vaga e Rossi como eventual derrotado, mesmo tendo um percentual de intenções de voto numericamente maior e em situação de triplo empate técnico. Nas urnas, Covas passou para o segundo turno com uma vantagem de apenas 0,4 ponto percentual sobre Marta, enquanto Rossi ficou mais de cinco pontos abaixo.
Outro exemplo de análise técnica, com relevância jornalística se deu em dezembro de 2009, quando se iniciava a disputa pela sucessão de Lula. Dilma Rousseff, então desconhecida da maioria do eleitorado, encontrava-se com apenas 23% das intenções de voto, enquanto José Serra (PSDB) liderava com folga, com 37%. Havia a dúvida se Lula, então com 72% de aprovação a seu governo, conseguiria transferir prestígio para sua candidata, bem menos carismática do que ele.
A análise feita pelo Datafolha, publicada na edição de 23 de dezembro de 2009, combinou diversas informações e permitiu ao jornal afirmar, dez meses antes da eleição, o seguinte: “… há 15% de brasileiros que manifestam o desejo de votar na candidatura apoiada pelo presidente, mas não sabem ainda que Dilma é sua escolhida, deixando de optar por ela. Esse percentual equivale, em termos quantitativos, à diferença que mantém José Serra na liderança”.
Para chegar a essa conclusão, o Datafolha analisou os resultados de três perguntas: intenção de voto estimulada, grau de influência de Lula como cabo eleitoral e o conhecimento de Dilma como candidata do presidente. Isolados, esses números não tinham impacto. Combinados de forma criteriosa, revelaram o principal fato daquela eleição: o potencial de transferência de votos de Lula.
Olho vivo
O desafio de quem edita pesquisas eleitorais, portanto, não é só o de evitar erros de interpretação, mas também buscar informações que superem a corrida das intenções de voto. É também o de separar o joio do trigo, identificando quais dados são confiáveis para publicação. Em épocas de definição de candidaturas ou nos momentos decisivos da eleição, muitos levantamentos chegam às redações. Como distinguir o que merece confiança?
A lei e as resoluções que regulamentam a publicação de pesquisas eleitorais são rigorosas ao extremo. Obrigam os institutos a registrarem informações detalhadas dos métodos e dos instrumentos utilizados em cada levantamento, pelo menos cinco dias antes da publicação dos resultados. Essas informações ficam disponíveis no site do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para consulta pública e formam importante fonte de avaliação das pesquisas publicadas.
Entre as informações que podem ser consultadas, estão questionário completo a ser aplicado, contratante da pesquisa, valor e origem dos recursos, metodologia, período de realização da pesquisa e detalhamento dos locais de aplicação das entrevistas. Dessa forma, pode-se, por exemplo, verificar se a ordem das perguntas no questionário é coerente e qual é a fonte de recursos responsável por aquela pesquisa.
É importante avaliar também a reputação de quem divulga resultados. O Datafolha entende que todas as análises feitas pelo instituto ou por seus profissionais devem ser estritamente técnicas. O pesquisador deve manter distância de qualquer alinhamento político ou ideológico. Se uma análise ou o conjunto de manifestações do instituto ou de seus dirigentes permitirem identificar alguma preferência, a credibilidade dos resultados que divulga estará comprometida.
Cada vez menos jornalistas e pesquisadores se opõem, mas interagem na busca de informações confiáveis e relevantes. A experiência singular da relação entre Folha e Datafolha gerou estudos e notícias que acompanharam a trajetória da redemocratização no país, expondo o ponto de vista dos cidadãos, e contribuindo para a compreensão dessa evolução. O desafio é prosseguir.
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Mauro Paulino é diretor-geral do Datafolha. Participa do Conselho Orientador do Centro de Estudos de Opinião Pública, da Universidade Estadual de Campinas e do Comitê de Opinião Pública da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisas.