França se choca com um não-evento ‘anti-semita’ hiper-midiatizado que estigmatiza ainda mais os negros e os árabes dos subúrbios.
‘Nos enganamos como todo mundo e não é um consolo quando se tem a ambição de fazer diferença’ (Libération)
O que aconteceu no trem do RER perto de Paris, na sexta-feira (9/7), para desencadear o ‘assombro’ de Jacques Chirac, declarações de indignação de seu ministro do Interior, Dominique de Villepin, de líderes da comunidade judaica, de organizações anti-racistas e de representantes de todos os partidos políticos?
Nada. Absolutamente nada.
Mas por que esse não-evento foi a principal notícia dos jornais impressos, das rádios e das TVs por três dias?
Para entender esse enorme engano coletivo, uma ‘barriga’ causada por uma overdose de zelo, é preciso conhecer as tensões comunitárias da sociedade francesa atual.
De um lado, a história recente ainda mal analisada da deportação dos judeus na Segunda Guerra. E uma terrível consciência de culpa coletiva não-purgada. De outro lado, duas comunidades: uma de origem árabe-muçulmana, cerca de 10% da população, e outra, a maior comunidade judaica da Europa, cerca de 600 mil pessoas, a segunda maior do mundo depois dos Estados Unidos.
Um detalhe interessante para nós, brasileiros: a França, que se orgulha de ser o mais leigo dos países ocidentais, não inclui a pergunta ‘religião’ entre os dados do recenseamento. A quem se espantar, basta relembrar o que foi feito com as igrejas e com o calendário depois da Revolução Francesa de 1789. Qualquer estimativa da população muçulmana, judaica ou católica é, pois, uma aproximação.
Um telegrama da AFP
A grande população de origem árabe e judaica e um passado recente, que guarda feridas como a guerra colonial da Argélia e a colaboração com os alemães, são dados importantes para entender por que a República Francesa convive atualmente com um ressurgimento de atos anti-semitas mas também de atos anti-árabes ou islamófobos. Judeus e árabes têm um contencioso não-resolvido com a França. Os árabes da Argélia sempre se sentiram menos amados pela République que, com a Lei Crémieux, de 1870, concedeu a nacionalidade francesa aos judeus, mas não à população de origem árabe.
Ao mesmo tempo que são desprezadas por parte da população francesa dita de souche (eleitores de Le Pen e outros espalhados por diversos partidos), essas duas comunidades têm extremistas que se detestam mutuamente.
O não-evento do RER revelou não um fato anti-semita, mas um racismo sempre pronto a se manifestar contra árabes e africanos — os ‘agressores’ de uma jovem mitômana, eternos bodes expiatórios dos racistas.
Recapitulemos: uma jovem de 23 anos contou à polícia o terrível assalto de que foi vítima num trem de subúrbio. Ela e seu bebê foram agredidos brutalmente por seis rapazes — árabes e africanos, claro. Sua história percorreu o mundo graças a um telegrama da AFP transmitido às de 19h42 do sábado (10/7).
Explicações aos leitores
Marie Léonie deu detalhes: ao perceberem que sua carteira de identidade tinha um antigo endereço no XVIe arrondissement, os delinqüentes chegaram à conclusão de que se tratava de uma judia, já que o bairro é lugar de ‘judeus ricos’. Marie teve suas roupas rasgadas, cabelo cortado a faca e em sua barriga desenharam suásticas. E o pior: os outros passageiros assistiram a tudo passivamente.
Covardes, coniventes com a agressão, pecadores por omissão. Convidados pelo rádio e pela televisão a prestarem depoimento do que viram, nenhum deles se apresentou. Verdadeiros cúmplices. Como em Vichy, lamentaram muitos.
Marie montou o roteiro para a enxurrada de declarações de repúdio, que começou com a do chefe de Estado. O ‘ato bárbaro’ justificava o número de editoriais, manchetes, balanços sobre o crescimento do anti-semitismo, horror diante da barbárie. Uma bola de neve que transformou um fait divers virtual num grande acontecimento político e midiático.
Depois que Marie Léonie confessou que inventara toda a história e que ela mesma simulara os machucados, rasgara sua roupa e desenhara as suásticas na barriga, os jornalistas tiveram que se explicar com seus leitores.
O Journal du Dimanche (18/7) pediu desculpas assumindo a total responsabilidade pelo erro. ‘Agressão no RER: como a República escorregou’, deu em primeira página o Le Monde, dedicando duas páginas inteiras à grande lorota. Publicou o passo-a-passo da história, desde o momento em que o telegrama da AFP foi divulgado, as declarações dos políticos, as manifestações públicas contra o anti-semitismo. O jornal não deixou de ouvir novamente muitos políticos sobre o não-evento. Nenhum reconheceu ter-se precipitado. Ao mesmo tempo em que lembrava que agressões contra judeus aumentaram este ano, o jornal relatava algumas que foram divulgadas como atos anti-semitas e se revelaram depois histórias mal contadas ou mesmo inventadas — como a do rabino Gabriel Farhi, que deu queixa de uma agressão anti-semita e viu vários detalhes de sua história desmentidos pela investigação policial ainda em curso.
Fome de lobo
O diário Libération, que dera a história da ‘agressão anti-semita’ na edição de segunda-feira (12/7) em manchete de capa, relatando-a como mais um degrau na escalada dos atos anti-semitas, sentiu-se na obrigação de dar nova manchete em 14 de julho para contar a verdadeira história de um emballement midiático. A palavra pode ser traduzida como uma empolgação, um arrebatamento ou uma aceleração anormal, no caso de um motor. Neste caso, os motores se aceleraram de maneira anormal, não há dúvida.
No editorial em que analisava o episódio, Libération dizia que a mistificação ficaria como ‘um caso exemplar de histeria coletiva’. ‘Culpabilidade, retorno do recalcamento, medo de perder uma oportunidade, hipersensibilidade da opinião pública’ são fatores que, segundo o Libé, explicariam a supervalorização do fait divers por políticos e pela mídia. ‘Nos enganamos como todo mundo, e não é um consolo quando se tem a ambição de fazer diferença’, lamentou em longo texto de explicação aos leitores o diretor-adjunto da redação de Libération, Jean-Michel Thénard.
Algumas cartas dos leitores mostraram a desolação das comunidades de origem árabe e africana. O Movimento contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos (Mrap) condenou as ‘declarações irresponsáveis de pessoas que se aproveitaram dessa grande mentira para, uma vez mais, usar o anti-semitismo a fim de alimentar tensões intercomunitárias’. Negros e descendentes de árabes protestaram contra o uso dessas comunidades como eternos bodes expiatórios no inconsciente coletivo francês.
Daniel Schneidermann, crítico da mídia que escreve um texto semanal no Libération, se perguntava na crônica da sexta-feira passada por que, sabendo no fim do dia (domingo, dia 11), que os policiais não dispunham senão do testemunho da moça e dos certificados médicos que confirmavam seus ferimentos, seu próprio jornal, como os outros, decidiu fazer desse fait divers a principal manchete de segunda-feira. Schneidermann, que vê a tensão existente na França em grande parte como prolongamento do conflito do Oriente Médio, se pergunta como essa tensão pôde ser transformada em ‘retorno do anti-semitismo nazista’. ‘Todo imaginário tem fome de um lobo, cabe aos jornalistas e aos políticos resistir a esta fome’, diz o crítico.
Como um fantasma
Em defesa dos jornalistas deve ser dito que até o fim do domingo, quando fecharam seus jornais, eles não tinham nem o nome nem o endereço da ‘vítima’ para poderem fazer uma investigação paralela entre conhecidos e parentes.
Uma coisa é certa: essa história avivou preconceitos e reforçou rancores. Estigmatizando involuntariamente a população negra e magrebina dos subúrbios, a mídia amplia o fosso que separa essa população do resto do país e aumenta o ressentimento dos jovens que sofrem a discriminação e a exclusão no dia-a-dia.
Neste domingo, na cerimônia em que foi lembrada a razia dos judeus parisienses nos dias 16 e 17 de julho de 1942, presos no Vélodrome d’Hiver, antes de serem mandados aos campos de concentração alemães, a ex-ministra Simone Veil mencionou a história de Marie Léonie dizendo que o pior é que tudo pareceu digno de crédito. Ela lamentou que os jovens árabes e africanos tenham sido mais uma vez estigmatizados.
Na realidade, no episódio do não-evento mais midiatizado dos últimos tempos todos perdem: judeus, negros, árabes, políticos e sobretudo a imprensa francesa por ter exagerado a importância de um fait divers devido à mauvaise conscience que ronda a França como um fantasma.
A etnização do cidadão
Domingo, dia 18 de julho, apenas uma semana depois da divulgação do não-evento anti-semita, o primeiro-ministro Ariel Sharon convidou seus ‘irmãos judeus da França’ a emigrarem imediatamente para Israel, dando razão a quem aponta as denúncias de anti-semitismo (e não são poucos) como uma campanha orquestrada pelo Likud para incentivar a emigração de judeus franceses para Israel. As declarações do primeiro-ministro foram contestadas pelos líderes da comunidade judaica da França e causaram indignação no governo francês, que cobrou explicações de Israel.
O Le Monde (20/7), em editorial intitulado ‘Sharon e a França’, pergunta o que busca Ariel Sharon ao fazer ataques à França dizendo que ‘o país vive um anti-semitismo agressivo’. E responde: pode ser um aumento da emigração de judeus da França para Israel. Mas também, continua o jornal, ele pode estar querendo desqualificar a França, mantendo a Europa fora do jogo político do Oriente Médio.
Comentando as declarações de Sharon, Haïm Korsia, um próximo do grande rabino da França, Joseph Struck, explicou que a questão da ida para Israel dos judeus da França não está em discussão. ‘Judeus da França, isso não diz nada, o que há são cidadãos franceses, que são judeus como outros têm outra religião’.
Mas o que é o racismo senão a etnização do cidadão, coisa que, felizmente, não conhecemos no Brasil? Ao falar de dois festivais de cinema em Ramallah e em Jerusalém, o jornal L’Humanité escreve: fulano, judeu israelense, beltrano, árabe israelense. Em outros momentos, os jornais falam de judeu francês (juif français) ou de francês originário da imigração (français issu de l’immigration) para falar dos franceses magrebinos, descendentes de argelinos, marroquinos e tunisianos. Quando se referem aos negros, eles já não chamam mais de franceses africanos. São simplesmente africanos, como se a cidadania francesa desses homens de cor nem contasse.
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Jornalista