Quando era estagiário em um escritório de advocacia, no início dos anos 1960, o jovem Eros Grau achou um livro precioso no sebo Gaze, que foi por décadas o mais completo de São Paulo. Ao retirá-lo da estante, emocionadas e exclamou um longo “Ooolha”, chamando a atenção de um senhor ao lado. “O que é isso, rapaz?” “É um livro que me interessa”, respondeu Eros. “Por que isso pode te interessar? É um livro velho, sem significado nenhum”, continuou o senhor, visivelmente empenhado em tomar o volume para si. “Como assim?! Esse é um livro de Aureliano Leite sobre o movimento de 1932”, retrucou um enfático Eros, procurando mostrar que conhecia a obra e seu autor. “E você sabe lá quem foi Aureliano Leite?!” “Sei perfeitamente. O filho dele é muito amigo de meu pai e esse é um livro de grande significado para montar os fatos históricos da Revolução de 1932”, continuou Eros. “Então, me dê esse livro!”, insistiu o senhor, para um interlocutor surpreso. Eros recuou, segurando o livro apertado contra o peito, enquanto o outro voltava à carga: “Estou pedindo que me empreste o livro!”
Eros recorreu ao dono do sebo, que lhe fez um sinal com a cabeça, sugerindo que cedesse. Na iminência de perder o “achado”, obedeceu. O senhor abriu o livro com ar de satisfação, pegou uma caneta e perguntou como Eros se chamava. Escreveu: “Esse livro pertence a Eros Roberto Grau, a quem deixo meu abraço fraterno. Aureliano Leite”.
Quase 50 anos depois, a biblioteca de Eros Grau, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) – que prefere ser identificado como professor do Largo de São Francisco – tem mais de 20 mil livros. Alguns são raríssimos, como um breviário de 1584, um Código Justiniano de 1607 e a primeira tradução para o francês de Os Lusíadas, de Camões, de 1735. Outros possuem forte valor sentimental, caso de uma edição de A Finalidade do Direito com dedicatória do autor Rudolf von Ihering para seu neto. A obra foi um presente de Maria, bisneta de Ihering, um dos autores que mais impressionaram Eros, quando leu, ainda jovem, A Luta pelo Direito.
Muitos livros foram obtidos em verdadeiras batalhas. Algumas, no exterior, em sebos e feiras na França. Outras, com adversários no universo de caçadores de obras raras, como José Mindlin, o maior bibliófilo brasileiro.
Quando foi secretário da Cultura do estado de São Paulo, nos anos 1970, Mindlin teve três assessores jurídicos: Celso de Mello, Eros Grau e Flávio Bierrenbach – dois, futuros ministros do STF, e outro, do Superior Tribunal Militar.
Um dia, Grau pediu a Antonio Angarita, então chefe de gabinete de Mindlin, que interrompesse o andamento da agenda do secretário para tratar de um assunto um tanto incomum: um livro de Robinson Crusoe. O jovem Eros queria saber se a edição era valiosa. O experiente Mindlin, após examinar a obra, respondeu que aquela tiragem não tinha nada de especial. “Pensei: mas que coisa! Entrei pelo cano!”, lembra. “Não paguei um absurdo, mas tinha custado caro.” Duas semanas depois, Angarita procurou Eros e, a pedido de Mindlin, perguntou se ele não queria se desfazer do livro. “Eu disse: ‘Aqui, ó!’”
“Não conto essa história para criticar, pois teria feito a mesma coisa que ele”, admite. “Quero ser de uma pureza franciscana, mas, em matéria de livro, sou o que os franceses chamam de malin, que quer dizer sacana. Não, ninguém vai me engambelar em matéria de livro e, se puder, engambelo.”
Um poeta chamado “Mário Sobral”
Quando encontra um livro raro em feiras na França, Eros acrescenta outros dois, de menor importância antes de ir ao caixa. Esse “ensanduichamento” evita que o vendedor perceba seu interesse por determinada obra e, segundo ele, reduz o preço. Foi o que ocorreu quando encontrou as Memórias de Guay-Trouin, numa feira em Saint Sulpice. Eros ficou paralisado ao ver o livro de 1740 sobre o almirante francês que tentou invadir o Rio 29 anos antes. “O que você vai fazer?”, sussurrou sua mulher, Tânia. “Cata qualquer coisa”, murmurou Eros. Juntaram mais dois ou três livros de menor valor e levaram uma preciosidade de 274 anos por um preço razoável.
Outra estratégia utilizada pelo professor nas livrarias e sebos do Brasil é a de memorizar a estante e a prateleira onde está o livro desejado. Em seguida, pede que alguém de seu escritório vá ao local e faça a compra por ele. “Se veem que sou eu que quero o livro, o preço aumenta muito.”
As caçadas de Eros tornaram possível a formação de uma das mais impressionantes bibliotecas do país. Na casa de Tiradentes, em Minas Gerais, organizou um acervo tão eclético que foge ao que seria a biblioteca tradicional de um advogado. Quem pensa em se deparar com uma série de livros técnicos de direito, certamente vai se decepcionar. Os códigos e as chamadas “revistas dos tribunais” estão quase escondidos, no fundo da biblioteca. Nas estantes frontais, há muita literatura, filosofia suficiente para se refletir nessa e na próxima vida e uma imensidão de livros de história e sobre condições sociais no Brasil. Eros segue à risca a lição que dava na Faculdade de Direito na década de 1990: “Todo jurista deve ser um humanista. A biblioteca do jurista deve escandalizar o advogado eficaz.”
O professor é um crítico dos livros técnico-jurídicos, pois acha que muito do que se produz na área é de má qualidade e padece de falta de estilo. “Quando pego um livro desses, começo a ler uma frase e tenho medo de o verbo cair de repente.”
Ao mesmo tempo, Eros vive um sofrimento particular. Recebe muitas publicações jurídicas, algo que atingiu o limite nos seis anos em que foi juiz, como gosta de se referir ao período no STF. Entre 2004 e 2010, seu gabinete ganhou quantidade de livros jurídicos que se tornou insuportável mesmo para ele, que, além da casa em Tiradentes, possui apartamento em São Paulo, outro em Paris e uma pequena propriedade em Honfleur, na costa da Normandia. “Tive que selecionar, o que é algo doloroso. É duro ter que se desfazer de livros. Sei que todo sujeito que escreve uma obra, em geral, faz um esforço. É um sacrifício e simplesmente não dá para jogar fora.”
A solução foi doar obras para universidades. A primeira escolhida foi a Faculdade de Direito de São João Del Rey, a mais próxima de sua casa em Tiradentes. Só que Eros também recebe acervos inteiros de famílias que, na perda do patriarca, desejam que alguém mantenha as obras intactas. Ele atende essas famílias com carinho, mas, em algum momento, é forçado a fazer uma triagem para, como diz, “desovar alguns livros de Direito”.
Apesar do desapego aos livros técnico-jurídicos, foi o direito, e não a paixão pela literatura e pela filosofia, que levaram Eros a Tiradentes. Ele esteve pela primeira vez na cidade em 1972, ciceroneado pelos professores Orlando de Carvalho e Washington Albino de Souza, da Universidade Federal de Minas Gerais. Washington desenvolveu o conceito de direito econômico, disciplina lecionada por Eros na USP por mais de três décadas. Após visitar algumas cidades, insistiram para que Eros fosse a Tiradentes para o então recém-inaugurado Solar da Ponte, o hotel pioneiro no turismo da região.
Eros chegou a Tiradentes uma semana depois de Jean-Paul Belmondo se hospedar no mesmo lugar, circunstância que o levou a colocar em seu escritório um pôster do filme À Bout the Souffle, (Acossado), estrelado pelo ator francês. “Viemos para ficar um dia e ficamos todo o resto das férias”, lembra Eros.
Eros alugou um quarto por um mês, para escrever seu primeiro livro, sobre o conceito de tributo. Foi quando o dono do hotel, o inglês John Parsons, disse estar certo de que ele iria acabar comprando uma casa em Tiradentes. Eros perguntou qual casa seria. “Aquela ali”, respondeu John, apontando para a propriedade vizinha.
A casa tinha o preço de um Volkswagen e Eros decidiu adquiri-la como se entrasse numa aventura. “Inauguramos a casa com um champanhezinho tomado em copos de plástico”, recorda-se. Depois, apareceu a possibilidade de comprar a casa do lado. Em seguida, um terreno vizinho. Hoje, a casa de Eros é uma composição de sete escrituras.
A história da casa se mistura com a da biblioteca. Depois de comprar a propriedade em Tiradentes, Eros passou a guardar livros numa pequena construção dentro do terreno, chamada de “Largo de São Francisco” – mesmo nome da faculdade em que lecionou. Ele queria organizar os livros que, antes, ficavam em seu escritório no largo do Ouvidor, no centro de São Paulo. Foi então que sua cunhada se dispôs à tarefa. Sonia se entusiasmou tanto com a missão que cursou biblioteconomia na USP e deixou o emprego em uma joalheria para se dedicar à biblioteca de Eros, tema de seu trabalho de conclusão de curso.
Hoje, ela mora a duas quadras do local, onde trabalham mais duas funcionárias, que, vez ou outra, recebem visitas inusitadas, como a de um turista que pediu encarecidamente para conhecer o local e, após algumas horas, não deixava a biblioteca. Quando uma funcionária disse que precisava sair para assistir à palestra de Laurentino Gomes, ele respondeu: “Não precisa se apressar, pois a palestra só vai começar quando eu chegar lá.”
Os mais conservadores correm o risco de se escandalizar antes mesmo de chegarem aos livros, pois a biblioteca está localizada em meio a um jardim decorado por estátuas nuas com uma capela católica em estilo mineiro no centro. Impossível chegar aos livros sem antes passar pela pequena igreja e pelos nus esculpidos pelo artista Vladimir Lucena. Alguns visitantes suspeitam de que duas imagens no jardim representam o professor e sua mulher. São um homem forte, barbado e ligeiramente gordo, de braços cruzados, em frente a uma mulher magra, altiva, com as mãos erguidas para o alto e os olhos focando o chão. Eros evita confirmar as especulações. Deixa que falem por si. “Se me chamasse Hermes, diriam que sou hermético e que montei uma biblioteca hermética. Mas, como me chamo Eros, dizem que sou erótico.”
As obras são em quantidade e diversidade tão grandes que até o professor admite certa dificuldade em classificá-las. “Passou uma imagem agora: livros são como mulheres”, diz. “A gente admira uma mulher porque é linda; outra, porque é inteligente. Não há um critério. Agora, se você disser: ‘Me mostre alguma coisa de sua biblioteca’, vou te levar à primeira edição de um poeta chamado Mário Sobral, cujo livro diz: ‘Há uma gota de sangue em cada poema’. Você vai dizer que é Mário de Andrade e eu vou te falar que ele assinou Mário Sobral”, conta Eros, divertindo-se com o pseudônimo utilizado em 1917 pelo autor de Pauliceia Desvairada.
A biblioteca tem manuscritos de Ruy Barbosa, “algo de dar inveja a juristas”, um livro sobre o Direito na Bretanha, publicado em 1789, antes da revolução, “em que o autor mostra que alguma coisa estava para acontecer”, e até “coisas antipáticas que pensei em jogar fora”, como uma edição de Mein Kampf (Minha Luta), de Adolf Hitler. “Não tem nada a ver comigo. É um livro de ódio que tenho aí, meio escondido.”
Os debates na biblioteca
Guardado como se fosse joia, um bilhete que cabe na palma da mão figura entre os resultados mais preciosos das caçadas de Eros. Primeiro, o professor pensou que, por causa das iniciais CP, tinha encontrado um bilhete de Luís Carlos Prestes. Procurou o jornalista Armênio Guedes, que foi secretário de Prestes, para verificar a autenticidade do documento. Armênio lhe disse que o texto não era de Prestes, mas possivelmente do pintor Carlos Prado. Eros se decepcionou, imaginando que havia dado um tiro n’água. Então, Armênio apareceu com um bilhete real de Prestes e lhe deu como presente. Ao chegar em casa, Eros percebeu que havia perdido a preciosidade. Desesperado, refez o caminho até o apartamento onde mora e tentou localizar o taxista que o levara, sem sucesso. Dormiu derrotado. “Queria desaparecer do mundo.” Na manhã seguinte, o segurança do prédio lhe telefonou para dizer que ele deixara cair algo. Era o bilhete.
Hoje, o pequeno texto está ao lado de obras dos séculos 16 e 17, numa estante permanentemente ventilada, lacrada por um vidro especial de segurança, numa caixa vermelha do tamanho de um livro, espécie de encadernação especial. É difícil ler o conteúdo do bilhete, por causa da caligrafia de Prestes, mas o importante é que a raridade está bem conservada na biblioteca. “Isso me traz mais emoção do que muitas obras.”
Saímos da biblioteca e perguntamos se Eros, que foi preso na década de 1970, aprovaria a decisão tomada pelo STF, sob a relatoria do ministro Eros Grau, em 2010, de não rever a Lei da Anistia, de modo a permitir a punição de torturadores. “Eu compreenderia, pois o Eros dos anos 1970 não era um terrorista. Ele era um revolucionário, mas um revolucionário marxista, e não um louco”, diz enfaticamente. “Aquele cara dos anos 1970 deve ter compreendido perfeitamente que a anistia foi algo negociado. Não haveria anistia para um lado só. Simplesmente, não haveria essa possibilidade.”
Eros não tem saudades dos tempos de Supremo, do assédio sofrido enquanto ministro e da convivência reverencial no ambiente da corte. Diz que, se tivesse que morar em Brasília, escolheria a Vila Planalto – único bairro com praças e esquinas, no Plano Piloto, que parece uma cidade interiorana. Ultimamente, observa de longe o movimento encabeçado pela OAB para mudar a decisão do STF no caso da anistia. “Isso é a mesma coisa que houve no caso do mensalão. Mudou a composição da corte e, com isso, mudou a decisão. É a negação do chamado direito burguês.”
Eros explica que o “direito burguês” é chamado assim porque assegura a estabilidade das instituições e garante a segurança jurídica. “No momento em que se muda isso, temos a anarquia. Trocam as pessoas que estão votando e troca-se a decisão.”
Em seguida, faz um elogio ao presidente do STF, Joaquim Barbosa. “Sabe que eu o admiro? O Joaquim é autêntico.” Para Eros, Barbosa não vota com o objetivo de agradar ao clamor dos que reclamam a punição de corruptos, mas o faz na mera aplicação do direito, porque acredita no sentido das decisões que toma. O elogio é inusitado, pois Eros e Barbosa tiveram uma discussão ríspida no intervalo de uma sessão, em 2008, em que Barbosa o chamou de “velho caquético” após a concessão de habeas corpus para um ex-auxiliar do banqueiro Daniel Dantas. O episódio quase levou a uma inédita briga de fato no Salão Branco do STF, onde os ministros se encontram para um lanche no intervalo das sessões. Eros ameaçou levantar a bengala, enquanto Barbosa o censurava.
Logo após a discussão, quando o clima entre ambos estava o pior possível, Eros recebeu um telefonema de um amigo que teria a indicação de um médico para tratar as fortes dores na coluna que atormentam o atual presidente do STF. Ele foi atrás de Barbosa, que continuava irritado, olhando-o com cara de poucos amigos. “Joaquim, calma”, disse Eros, e lhe passou o telefone do médico. Barbosa surpreendeu-se e agradeceu. Desde então, mantêm boas relações e são amigos, apesar de não muito próximos.
Outra história revelada por Eros é que poderia ter sido indicado para o STF, em 1997, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, foi chamado a Brasília por Nelson Jobim, então ministro da Justiça – gaúcho de Santa Maria, como ele. Jobim confidenciou que o presidente pensava em indicá-lo para o tribunal. “Mas, se não for eu, vai tu”, disse a Eros. Jobim acabou sendo indicado, naquele ano, e Eros estava cotadíssimo para as próximas vagas. Mas suas posições contrárias às privatizações e a proximidade com juristas de esquerda, muito ligados ao PT e críticos ferrenhos do PSDB, como Celso Antônio Bandeira de Melo e Fabio Konder Comparato, fizeram que ele só assumisse a cadeira no STF em 2004, com o apoio do então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, e pela caneta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Enquanto relembra essas passagens, Eros pega sua máquina fotográfica e passa a disparar flashes sobre o repórter e o fotógrafo. “É possível fotografar rumores?”, questiona Eros ao fotógrafo Ruy Baron. “E memórias? Podemos fotografar memórias?” O professor revela-se um apaixonado por fotografia. Mostra um local que serviu como estúdio de revelação e uma Rolleyflex. Diz que algumas mulheres ficam desinibidas diante de uma câmera como aquela.
Mesmo há mais de 40 anos na cidade, Eros caminha raríssimas vezes por Tiradentes. Dedica boa parte do tempo à biblioteca. Um dono de restaurante local contou que, em 30 anos, só o viu andando uma única vez pela praça central, “sorrindo e com uma educação…” “Um cavalheiro”, diz, sobre o senhor de bengala, barriga proeminente e barba avantajada, que, por todo esse conjunto, se parece com Karl Marx – e se orgulha disso.
Eros não é apenas um leitor e colecionador de livros, mas autor. São mais de 40 obras publicadas e incontáveis artigos acadêmicos. Um livro em homenagem a ele, organizado pelo professor da USP José Maria de Arruda Andrade, rendeu contribuições de 85 personalidades, que vão de ministros do STF ao escritor Ignácio de Loyola Brandão.
Três de suas obras saem do universo jurídico e entram na literatura. São Triângulo no Ponto, Paris Quartier Saint-Germain-Des-Près e Teu Nome Será Sempre Alice. Triângulo no Ponto conta a história de três personagens ao longo do período da ditadura militar. Descrições de cenas de sexo são apenas um componente da obra. Há uma cena de prisão muito parecida com um fato real vivido por ele. “Os três livros são autobiográficos”, revela. “É lógico que sempre há alguma coisa de autobiografia. Fui um sujeito de classe média com uma série de vantagens porque meu pai me propiciou estudos e qualidade de vida. Tive um leque de horizontes. Podia ser um homem de negócios, podia ter realizado minha vocação, que acho que é a literatura, e ser professor de Direito. Acho que, de certa forma, sou as três coisas. Quer dizer, tive muita sorte. Não fui homem de negócios, mas fui capaz de ganhar algum dinheiro e acho que, de tudo que acumulei, não há tostão de mais valia.”
A fama de autor levou Eros a disputar uma vaga na Academia Brasileira de Letras, logo que deixou o STF. Perdeu. Mas afirma que, se houver oportunidade, vai disputar novamente. E qual a razão de querer se tornar “imortal”? “Vaidade”, responde, sem titubear. “E a oportunidade de participar das reuniões da Academia.” Eros conta que se diverte nos debates periódicos da Academia Paulista de Letras, da qual é membro, e acredita que o mesmo aconteceria na Brasileira.
Na sua biblioteca, há uma longa sala exclusiva para debates: uma mesa com 18 cadeiras que parecem ter mais de dois séculos, banhadas pela luz de lustres igualmente antigos. Sobre um armário imenso repousa uma Brasiliana que surgiu de uma história curiosa. “Recebi uns honorários, há muitos anos, nessa coisa de advogado em que, de repente, vem uma grana numa paulada. Dei o dinheiro para minha mulher e falei que comprasse uma joia. Então, ela respondeu que precisava alugar uma Kombi. Pensei: ‘Essa mulher ficou louca! Que joia é essa que ela comprou?’ Aí, compreendi que ela tinha comprado uma joia para mim e para ela. Era uma Brasiliana completa.”
Os debates reúnem juristas brasileiros e internacionais para discussão de vários temas do Direito. A arbitragem é o mais constante. A maioria é de juristas de esquerda, o que talvez explique a bandeira de veludo vermelho com a imagem de Lenin bordada ao lado de inscrições em russo, como “Proletários de todo o mundo, uni-vos.”
Eros conta que os debates são fechados e as conclusões não são publicadas, pois tudo é feito para reflexão, e não para divulgação. “Sabe de uma coisa? As pessoas que trabalham com direito, sejam advogados, professores ou juízes, podem ser classificadas em dois grupos. Um é dos que trabalham e gostam; o outro é de quem precisa aparecer porque não tem nada para mostrar.” Os juristas que vão a Tiradentes, como Pierre Mayer, Carlos Herrera e o brasileiro Tércio Sampaio Ferraz Junior, estão, segundo ele, no primeiro grupo, o daqueles que não precisam aparecer.
O papel do juiz
Para Eros, os juízes também não devem buscar aprovação. Ele compara a atividade de julgar com a de um músico. “Quando o músico toca uma partitura, interpreta o texto para o deleite estético do público. Mas quando o juiz interpreta um texto, não é para deleite de ninguém.”
Eros reconhece que as decisões dos juízes, em especial do STF, são políticas, mas não no sentido político-partidário, em benefício de determinados grupos ou legendas. “Não há juiz apolítico. Senão, seria mais fácil colocar os dados do processo dentro do computador e retirar a decisão”, diz. Mas a crítica feita por Lula, de que o julgamento do mensalão foi 80% político, foi vista como inadequada por Eros.
“Só posso garantir que as classes não privilegiadas não sejam exploradas na medida em que eu tiver a lei”, adverte Eros. Seguindo nessa linha de raciocínio, ele puxa seu livro Ensaio e Discurso sobre a Interpretação e Aplicação do Direito que, na 6ª edição, ganhou um novo e revelador título: Por que tenho medo dos juízes?
“O juiz interpreta o Direito cumprindo um papel que a Constituição lhe atribui, de modo tal que passa a ser algo que não é ele mesmo, mas coisa-juiz”, lê Eros. “Ele pode ser tudo, no sentido de que não é apenas juiz. Mas, enquanto estiver sendo juiz, deve representar o papel de juiz”, segue. “Ao não representar um papel de juiz, durante o dia posso ser músico, pescador, podemos representar vários papéis. Enquanto não estiver representando o papel de juiz, poderão, sim, prevalecer os seus valores. Enquanto juiz, contudo, há de se submeter unicamente à Constituição e ser por ela determinado. Isso é tudo que eu queria dizer.”
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Juliano Basile, do Valor Econômico