Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Curtir ou renegar, eis a questão

Imagine o que pensaria um alienígena desavisado que por aqui despencasse, ou de repente o próprio Criador voltando de longas férias, diante do fuzuê midiático que rola nesses dias em torno da Copa do Mundo de futebol. Poderia muito bem imaginar tratar-se de algum foro mundial, convocado para discutir assuntos relevantes para o bem-estar e a proteção de nosso exaurido planeta; ou para celebrar a paz entre as nações, erradicar a miséria, viabilizar uma distribuição mais justa de renda e riqueza, enfim, estas e outras coisas sempre tão sonhadas pela humanidade, mas nunca alcançadas.

Ledo engano. Antes fosse.

Projetadas em alto-relevo na emulação futebolística, a semiótica caótica, o adesismo compulsório e a tietagem explícita, incrementados pelo frenesi desvairado dos veículos de informação, escancaram o espírito e as motivações que inspiram a chamada civilização do espetáculo e os novos paradigmas que campeiam no decantado pós-modernismo. Valores centrados em padrões comportamentais e ícones erigidos por força e em decorrência do quase generalizado panorama de rebaixamento cultural mundial – exceção feita, talvez, aos países asiáticos –, oriundo do descompasso entre o desenvolvimento tecnológico e políticas educacionais defasadas e anacrônicas. Notadamente as a cargo do estado.

Não bastasse o simbolismo de um movimento capaz de atrair um contingente de 20 mil jornalistas de todos os quadrantes, ambos – E.T. e Criador – certamente ficariam ainda mais surpresos com o normalmente impensável, e historicamente improvável, congraçamento entre tantos povos de etnias e credos diferentes. Fato digno da aprovação do próprio Cristo Redentor que, literalmente de braços abertos, dá boas vindas a uma Copa do Mundo brasileira 64 anos após o trauma do Maracanazo.

O legado da Copa

Mesmo quem não compartilha da sacralização futebolística, e faz questão de exteriorizar seu descontentamento e revolta contra a realização de tão portentoso – e dispendioso – evento num país com tantas carências, há de convir que esse mérito não se pode negar-lhe, e em particular, a seu evento máximo. O de ser capaz de mobilizar e despertar em tanta gente sentimentos que dignificam o ser humano, como paixão, emoção, alegria, confraternização, e por aí afora.

Pena que, em se tratando de Brasil, envolva também o turismo sexual, riscos de arrastões, assaltos, rolezinhos, estupros, enfim, coisas que o boquirroto secretário-geral da Fifa, Jérôme Valcke – sutil como macaco em loja de cristais – obviamente tinha em mente quando alertou os visitantes que o Brasil não é a Alemanha. Um alerta sem dúvida procedente, mas dispensável e no mínimo deselegante, e que – já que é para pisar no calo – não chega nem aos pés do que se fala da entidade que representa, com seu longo histórico de corrupção e mutretas. As quais, a se confirmarem as denúncias publicadas pela imprensa britânica no início da última semana, podem levar inclusive ao cancelamento da escolha do Catar como sede da Copa de 2022.

E já não é sem tempo, pois não é de hoje que se especula sobre a prática recorrente de pagamento de propinas a dirigentes e delegados da Fifa, entre os quais nossa manjada dobradinha, João Havelange e Ricardo Teixeira, em troca não só de votos nas escolhas de sedes dos eventos que patrocina, como na própria manipulação de resultados, de evidências tão fortes que a entidade se viu instada a investigar mais de 600 jogos sob suspeição. Alguns dos quais envolvendo jogos de classificação para a Copa da África do Sul e a atual.

O certo é que por estas e outras, motivos é o que não faltam para a rejeição demonstrada por boa parte da opinião pública e da imprensa à realização da Copa no Brasil. Descontentamento que permanece como uma ameaça ao bom andamento da competição, com a perspectiva de manifestações mais agressivas, como costumam ser a dos chamados Black Blocs, por exemplo. Além de greves oportunistas, como a que voltou a paralisar parte do metrô paulistano na semana passada. Se para muita gente, provavelmente a maioria, os aspectos positivos por si só já seriam suficientes para justificar os gastos e o esforço para atender ao exigente padrão imposto pela Fifa, envolvendo gastos que já passariam dos 30 bilhões de reais, inegável também é que só mesmo com muito boa vontade e boa fé pode-se acreditar no retorno que o tal legado da Copa irá trazer, com uma penca de estádios suntuosos e obras de infraestrutura urbana que normalmente ficariam para as calendas.

A catarse que toma conta do planeta

De qualquer forma, mais racional e coerente a essa altura, é reconhecer que bobagem ainda maior seria empanar a festa com distúrbios e manifestações fora de hora, denegrindo ainda mais a já maltratada imagem no país lá fora. Se o que podia ser feito e roubado já são fatos consumados, como bem resumiu Joana Havelange Teixeira, neta e filha dos notórios ex-mandachuvas da Fifa e CBF, respectivamente – ela própria, por conta disso, teúda e manteúda de um certo Comitê de Organização Local da Copa –, jogar excremento no ventilador a essa altura de nada adiantaria, em nada ajudaria.

Ademais, a sorte está lançada, como se diz, e com o grande dia da abertura chegando, é hora de cruzar os dedos e torcer, não só pelo sucesso da seleção como para que tudo corra bem nesses 30 e poucos dias de disputa. Como se sabe, serão 64 embates entre 32 seleções que medirão forças aos olhos – e sob o crivo – de uma multidão que deve bater o recorde mundial de audiência. De butuca ou na torcida, aboletados em majestosas e recém-inauguradas arenas edificadas a peso de ouro – o famoso custo Brasil fez a previsão inicial de gastos triplicar –, ou em frente de telinhas e telões em todos os cantos do planeta.

Em suma, trata-se de um espetáculo para cerca de 3 bilhões de telespectadores, que durante breves períodos farão uma pausa, darão uma trégua, enfim, irão comungar a mesma paixão e idolatria por um esporte que já foi retratado como alegoria da vida, batalha estilizada, ópio do povo, e por aí afora. E como se tudo isso não bastasse, torna possível a utopia do congraçamento humano de raças, credos, ideologias.

Essa é a essência nua e crua da coisa. Todo o resto – e ponha resto nisso – fica por conta do testemunho e do imaginário dos milhares de teóricos e especialistas em discutir o sexo dos anjos, vulgo menestréis e jograis midiáticos encarregados de transformar os encantos e as irrelevâncias do futebol na catarse que toma conta do planeta a cada quadriênio. Que ninguém espere por perfeição, é claro, mas diante das dúvidas de toda espécie, que volta e meia colocavam a realização do evento em xeque, as condições básicas para o sucesso da competição até que foram cumpridas.

Imprensa complacente

Contratempos e transtornos fatalmente ocorrerão, afinal, o Brasil não está nem perto de ser uma Alemanha. O que também não chega a ser motivo para temer pelo pior. A acolhida aos visitantes com certeza será calorosa, como é de nossa feitio. As cidades-sedes e os palcos, se não estão 100 % nos conformes, devem dar para o gasto. Mesmo porque, sejamos francos: com tantas seleções meia-boca, candidatas a voltar para casa logo na primeira fase, era inevitável que o tal padrão Fifa de qualidade acabasse virando motivo de ironias e galhofa por aqui.

Tudo bem que no Brasil as coisas sempre funcionaram assim, meio na marra, na base do tranco, ou o tal pontapé na bunda sugerido por Valcke, ciente de que planejamento e organização nunca foram nosso forte. Estamos acostumados a nos contentar e a nos virarmos com pouco. A dar nó em pingo d’água, a tirar leite de pedra, eufemismos do pendor a improvisação e ao famigerado jeitinho brasileiro. Não tinha como não bater de frente com o rigoroso padrão de qualidade exigido pela Fifa.

Que por isso mesmo foi dura, bateu pé, indiferente à troca de farpas com as autoridades e à hostilidade dos nativos. Ou seja, fez a sua parte e não merece ser criticada por eventual excesso de zelo. Afinal, o governo brasileiro sabia dos termos e do enorme desafio de construir uma infraestrutura praticamente do zero, e mesmo assim concordou, sem pestanejar – se é que o então presidente Lula se deu ao trabalho de ler o que assinou. Sim, porque se examinasse as cláusulas tintim por tintim – o mais provável é que só tenha passado o jamegão, como Dilma Rousseff fez em relação a lesiva compra da refinaria de Pasadena pela Petrobras –, avaliado seriamente os prós e contras, enfim, tivesse um pouco mais de juízo, não teria largado essa verdadeira batata quente nas mãos de sua sucessora.

“Parte da imprensa é contra a Copa”, trombeteou ainda outro dia o ministro Aldo Rebelo, repetindo o mantra consagrado por Lula. Ora, bem que se diz que o hábito do cachimbo deixa a boca torta, visto que a imprensa tem sido até complacente, até mesmo por ser parte interessada e beneficiada, mormente as Organizações Globo, que detêm cerca de 70% do mercado televisivo no país, o segmento mais influente e rentável.

Monopólio vitalício

De modo que insinuar que a imprensa possa estar insuflando as manifestações e reações contrárias que ameaçam ofuscar o andamento da competição, não passa da velha tática de lançar cortina de fumaça para confundir os fatos. Ainda que os protestos não sejam inteiramente espontâneos, posto que o tal movimento Black Block e outros grupelhos são predispostos a baderna e ao quebra-quebra inconsequente e criminoso, só não vê quem não quer as vertente predominantes das atuais manifestações são uma extensão das jornadas de junho do ano passado. Cujas principais reivindicações, por sinal, sequer foram atendidas, e os aumentos de preços em geral até recrudesceram.

O fato é que, não obstante a mistura com a política nunca ter feito bem ao futebol, de uns tempos a esta parte a semelhança entre ambos é cada vez maior. Não só pela utilização dos clubes como trampolim – basta ver quantos ex-dirigentes e atletas aposentados militam hoje na política –, como pelos arranjos e trambiques de ordem financeira que hoje em dia proliferam nos bastidores do futebol, através de intermediações no mais das vezes lesivas e fraudulentas, a dano dos clubes e do próprio fisco. Como no exemplar caso da transferência de Neymar para o Barcelona. Esquemas que passam invariavelmente pela ação cada vez mais ativa e abusiva da malta de agentes e empresários inescrupulosos, às vezes trasvestidos de investidores, que transformaram o futebol num autêntico balcão de negócios, no qual os clubes são reféns.

A tal ponto chegou a mercantilização e o mercenarismo no futebol que, além de muito de seu antigo encanto e apelo estar se dissipando, com grande parte de público deixando de comparecer aos estádios, virtualmente dominados por bandos fanatizados e de má índole, invariavelmente subsidiados pelos próprios clubes, o poder econômico exercido de modo cada vez mais acentuado pelos centros mais fortes, vem decretando um desequilíbrio entre os continentes que tende a dificultar ainda mais a sobrevivência dos clubes sul-americanos, provedores e vítimas deste processo funesto para o futebol.

Funesto no sentido de que esse deslocamento de forças, que faz com que o interesse e a audiência dos principais campeonatos europeus já supere a de nosso futebol doméstico, condena os clubes a dependência de intermediários sanguessugas e das cotas da Globo, cujo monopólio vitalício também não deixa de ser um atraso de vida para eles, por limitar o faturamento em função do alijamento da concorrência. Algo que a própria Fifa suprimiu agora, abrindo a transmissão da Copa para outras redes.

‘Vamo carcá’o pé na bola

Eis porque não surpreende – ou não deveria – o descaso e a própria rejeição que a Copa vem sofrendo justamente no outrora país do futebol. Decepção, desilusão, que curiosamente parece afetar principalmente os mais velhos, talvez pelo apego aos valores tradicionais, que vão sendo desprezados e rejeitados pelas gerações mais novas. Daí a frequência majoritariamente de jovens nos jogos da seleção, como ainda no último amistoso preparatório, na sexta-feira (6/6) contra a Sérvia, num Morumbi quase lotado, que chegou a ensaiar vaias, mas no fim se curvou à magra vitória obtida com o plástico gol de Fred.

No que me diz respeito, se não chego ao ponto de torcer contra, como vejo muita gente alardear, também não vou ficar deprimido ou me deixar levar pela pantomima apelativa da mídia se a seleção não chegar ao alto do pódio. Basicamente, por já estar vacinado e calejado para me deixar comover com um evento que no fundo não passa de um simulacro de nossa realidade futebolística, por conta da já mencionada evasão e esvaziamento que desfigura nossos clubes. O que dificulta a identificação com uma seleção formada por forasteiros, e se deixar levar pela exortação midiática em torno da pátria de chuteiras, trololó inventado pelo grande Nelson Rodrigues para compensar um suposto complexo de vira-latas.

Duvido que o próprio Nelson, ou outros cronistas que imortalizaram a era romântica de nosso futebol, lá pelos idos dos anos 1950 e 60, se ainda vivesse, teria ânimo para reverenciar com o mesmo fervor não só nossa seleção, como os craques da atualidade. Não por falta de talento, brilhantismo, repertório de jogadas, que isso não chega a ser um problema no futebol – e na própria seleção – de hoje em dia. Falta carisma e empatia com a torcida a uma seleção com a marca da globalização, ou seja, formada por jogadores que só podemos ver pela televisão. Atuando ou estrelando comerciais de tudo que é produto. Daí a impaciência que aflora quando joga mal.

Ao contrário do que acontecia com nossas seleções que fizeram história, cujos nomes e respectivas bases vinham de times locais, estabelecendo assim vínculos mais fortes com a torcida, a formação atual, assim como as que fracassaram nas últimas três edições, é quase que totalmente de estranhos no ninho. Vindos da Inglaterra, da Espanha, da França, e até da Rússia e do Canadá, em cuja prestigiosa liga joga o nosso goal keeper, Julio Cesar. Em 2002 Felipão conseguiu a proeza de fazer com que a mescla que arregimentou desse liga, contrariando as previsões pessimistas suscitadas pela turbulenta campanha nas eliminatórias, mas agora foi obrigado a apelar para uma turma de estrangeiros, pois mesmo que quisesse, as opções domésticos nunca foram tão escassas.

De tal sorte que estou para esta Copa – turbinada por essa inusitada tour de force midiática –, como um certo personagem blasé de um gostoso causo contado por Armando Nogueira, outra lenda do jornalismo esportivo, e que deixou muitas saudades. Fala de um matuto chamado a participar de uma daquelas peladas de churrasco, num sítio interiorano, e que ao ser intimado a correr como os demais, posto que permanecia de braços cruzados ali pelo meio campo, não se fez de rogado: “Óia, correr atrás dela eu não corro, não. Mas se ela passar por aqui, eu carco-lhe o pé nela!”

Em suma, a animação e a empolgação com esta controvertida Copa podem andar devagar, meio borocochô, mas vai que a seleção engrena, faz bonito? Aí, convenhamos: só morto para ficar de braços cruzados, não passar a régua em tudo, enfim, não carcá o pé nela. E revoguem-se as disposições em contrário.

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Ivan Berger é jornalista