O painel de abertura do Fórum Brasil de Televisão 2014, que acontece esta semana [passada] em São Paulo, foi palco de um debate que expôs a nova realidade da produção independente no Brasil após a introdução das cotas de conteúdo nacional por força da Lei 12.485/2011, que instituiu o Serviço de Acesso Condicionado (SeAC). E o cenário é problemático. O fato, como ressaltou o vice-presidente de filmes e séries da Turner, Rogério Gallo, é que a demanda por produções nacionais gerada pela Lei do SeAC não levou em conta uma defasagem na oferta. Segundo ele, os canais precisaram cumprir as cotas, com fiscalização imediata da Ancine, e o mercado de produção não estava preparado – embora haja profissionais qualificados em alguns grandes centros de excelência, a mão-de-obra ficou escassa e seus custos, consequente, aumentaram muito. “Os mecanismos oficiais de financiamento não acompanham com a liberação de recursos na velocidade que os canais precisam e também precisamos hoje de profissionais de qualidade numa escala nunca antes imaginada. São poucas as produtoras aptas a produzir com qualidade e isso gerou custos inaceitáveis, fora de propósito quando se compara com produções no mercado internacional”, avalia Gallo.
Para tentar sanar o déficit de mão-de-obra, o executivo da Turner propõe um esforço coordenado de todos os agentes do setor – governo, operadoras, programadoras e canais e ainda as próprias produtoras para a capacitação de novos profissionais e mesmo a reciclagem daqueles que já atuam no mercado brasileiro. “Isso é um política de Estado, que tem como objetivo transformar o Brasil em um país produtor de conteúdo e que, no futuro, venha a ser exportador”, diz Gallo.
O diretor presidente da Conspiração, Gil Ribeiro, concorda que é preciso investir em desenvolvimento. “Temos foco grande na área de desenvolvimento dentro de casa e nossa área de serviços, para atender cotas da grade dos canais com um custo mais baixo, ajuda a financiar isso. Vamos construir nosso futuro e nossas propriedades”, conta. A Conspiração tem hoje um núcleo com 12 roteiristas, dos quais seis são treinees contratados, sendo aperfeiçoados para o mercado de trabalho. “O grande desafio nos próximos anos são as produtoras terem uma participação efetiva no que produzem e conquistarem o mercado de licenciamento com produtos que realmente vendam. Esse mercado ainda é pequeno, ainda não remunera como gostaríamos, mas queremos ser mais donos das coisas que criamos”, pontua Ribeiro.
Qualidade e performance
Outro problema enfrentado pelas produções brasileiras é, em termos gerais, sua baixa performance, medida pela audiência. O sócio e diretor da Giros, Belisário Franca, acredita que a necessidade por produções nacionais para cumprir cotas está causando um “nivelamento por baixo” da qualidade. “Temos assistido a muito programa barato e de baixa relevância para cumprir cota. Temos produtos excepcionais, de muita qualidade, na história da TV brasileira e temos que continuar buscando isso. Mas para se fazer uma série padrão ‘Homeland’, é preciso dinheiro. Não tem milagre”, pontua. Gil Ribeiro, da Conspiração, concorda: “A palavra-chave do nosso negócio é audiência. E audiência é dinheiro, que financia a qualidade da produção. Qualquer série internacional de sucesso custa US$ 9 milhões por episódio. Não conseguimos isso nem para 13 episódios em conjunto e temos que nos adaptar com o orçamento que temos.”
Para Gallo, da Turner, a questão não é apenas dinheiro. “Hoje temos problemas de performance dos produtos nacionais. Primeiro porque não custam pouco. Sabemos que as produtoras estão trabalhando com margens muito pequenas e que o custo aumentou muito, por isso mesmo a necessidade de formarmos mais profissionais, mas é preciso ter relevância. Já vi produtos baratos e excelentes e outros caros e péssimos”, argumenta. “Concordo que houve descompasso absurdo entre o cumprimento da lei e a estrutura para realizá-lo. É a questão de oferta e procura. Hoje – e falo por todas as produtoras – estamos ensanduichados, com mão-de-obra cara e achatamento de preços”, diz Gil Ribeiro.
Franca reconhece, entretanto, que é possível ter relevância mesmo com limites de orçamento que os canais impõem, citando o exemplo da série “Contos do Edgar”, uma adaptação das histórias do escritor Edgar Allan Poe à realidade brasileira. “Dá pra fazer com menos cenários, mas ainda com bom elenco e um bom texto para ter relevância”, complementa Gil Ribeiro.
Formatos engessados
Outra reclamação dos produtores é que muitas vezes os canais internacionais já vêm com formatos engessados para produção nacional. “A gente sente que os canais, principalmente os internacionais, já vêm com a cabeça feita em determinados formatos, com uma modelagem rígida, e para a formação de um mercado de produção nacional relevante é preciso que os canais sejam parceiros na criação e na execução. Esse diálogo é importante”, argumenta Franca.
O diretor Cao Hamburguer também acredita que há dificuldade para convencer os executivos estrangeiros. “A escola da TV aberta brasileira não está sendo aproveitada. Tenho visto muito ‘docudramas’ na TV paga que não têm a ver com a gente (os brasileiros). A TV brasileira será internacional quando tiver a nossa pegada. Quando fiz ‘Filhos do Carnaval’, imprimimos a marca brasileira numa produção com qualidade HBO que ninguém tinha visto lá fora e todos os programas que fiz que atingiram nível de excelência, havia uma boa relação de parceria com o executivo do canal”, pontua Hamburguer. “Precisamos ouvir os consultores internacionais, mas também o Guel (Arraes) e o (Jorge) Furtado”, completou.
Gallo também acredita que o bom diálogo entre produtoras e canais é essencial. “Tempos atrás, se o canal sugerisse a um produtor qualquer mudança para enquadrar melhor o projeto em sua estratégia, parecia que estávamos interferindo indevidamente. Hoje isso mudou, as produtoras já vêm conversar conhecendo a grade do canal e com preocupação com performance. É um ganha-ganha fundamental”. Mas o executivo da Turner, em um primeiro momento, vê vantagens em se trabalhar com franquias de formatos que já funcionam internacionalmente para a formação de profissionais. “Vemos o conteúdo nacional não como obrigação, mas como estratégia para gerar relevância. Nosso desejo é ter produtos nacionais para nos comunicarmos com o público, ainda mais no cenário de Internet e de desenvolvimento de comunicação. E mais, sem produtos locais, perdemos a oportunidade de gerar novas receitas não apenas de licenciamento, mas também de merchandising – algo que não podemos vender em conteúdos de fora”, conclui Gallo.
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Letícia Cordeiro, do Tela Viva News