Em condições normais de temperatura e pressão, discutir o fim da gratuidade na Universidade de São Paulo é mais ou menos como mexer em vespeiro. Agora imagine introduzir essa discussão no cenário já conturbado pela crise financeira que a USP enfrenta atualmente.
Foi o que fez a Folha na segunda-feira (2), ao dar na manchete que seis em cada dez alunos da maior universidade pública do país poderiam pagar uma mensalidade média de R$ 2.600 –valor cobrado pela PUC-Rio, instituição particular mais bem classificada no RUF (Ranking Universitário Folha).
Na terça, o jornal voltou à carga com reportagem em que figuras do mundo acadêmico discutiam hipóteses de cobrança possíveis.
Na edição de quarta-feira foi a vez de um editorial defender a tese de que cobrar mensalidade de quem pode pagar é, acima de tudo, uma medida de justiça social.
Nada de novo no front de opinião. O jornal é historicamente favorável à cobrança e reafirma essa posição com frequência. O problema é que o primeiro passo da retomada do debate foi dado com o pé manco.
A reportagem da segunda-feira foi objeto de muita contestação por parte de leitores –praticamente todos ligados a universidades públicas, é bom que se diga. Mas não era só a reação corporativa habitual, o material estava mesmo confuso.
Para chegar ao enunciado que foi parar na manchete, a reportagem criou sua própria fórmula, cruzando dados recolhidos em fontes variadas e fazendo conversões de índices aferidos com metodologias diversas. Louve-se o esforço, mas ele foi soterrado por falhas de edição.
A primeira foi a de não publicar a metodologia adotada de forma clara e detalhada. Sem ela, os leitores engajados fizeram suas próprias inferências e apontaram o que pareciam ser erros básicos.
Embora informasse, por exemplo, que o cálculo para concessão de bolsas fora feito com base nos critérios do ProUni, texto e infográficos usavam a renda familiar total do calouro, e não a renda familiar per capita, adotada no programa federal.
O texto falava em 60% de potenciais pagantes nos cursos de graduação, mas, para chegar a uma estimativa de R$ 1,8 bilhão de arrecadação, a soma incluiu todos os pós-graduandos no grupo de alunos que poderiam pagar mensalidade –algo incompatível com o mundo real.
O maior equívoco, a meu ver, foi dar título categórico para uma simulação sujeita a várias limitações.
Como apontei na crítica interna, é temerário afirmar que famílias com renda mensal de dez salários mínimos (R$ 7.240) podem despender R$ 2.600 com a mensalidade da universidade –especialmente se morarem na cidade de São Paulo, onde moradia, alimentação e transportes, para ficar no básico, comeriam a maior parte do rendimento.
Para a Secretaria de Redação, a reportagem não afirma que o aluno com renda familiar de dez mínimos pode pagar o valor de R$ 2.600.
Não vou listar aqui todas as questões levantadas, porque ninguém merece morrer de tédio num domingo, mas, aparentemente, não há erros a corrigir. Os interessados podem ler as explicações dos repórteres na página da ombudsman no site.
O irônico é que o que foi visto como “ataque” do jornal à universidade pública gratuita acabou jogando para escanteio a questão mais candente, a do deficit orçamentário da USP. Só sua folha de pagamento já compromete 105% dos repasses que recebe, e os funcionários estão em greve contra a proposta de manter os salários congelados em 2014.
Como a USP chegou a esse ponto é uma história que ainda não foi bem contada. Falta o jornal se debruçar sobre o caso com o mesmo ímpeto com que se dedica a esmiuçar governos de todos os níveis.
******
Vera Guimarães Martins é ombudsman daFolha de S. Paulo