Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Medo e mitologia na era dos memes

Desde 2009, ele assombra a internet. Corpo delgado, brancura cadavérica, terno sóbrio e rosto vazio, Slender Man apareceu pela primeira vez em uma foto-montagem em um fórum virtual de histórias de terror. Depois de ser inserida em uma foto “normal”, onde pode ser vista escondida entre crianças em um parque, sua figura misteriosa se espalhou pela rede. Virou protagonista de lendas e contos, foi representada em fan arts e até video games. Para muitos especialistas, trata-se do primeiro mito nascido na web, com diversos autores montando um pedaço de sua aparência e história.

Há exatamente duas semanas, porém, a criação extrapolou o imaginário digital para ganhar as páginas policiais. Em uma pequena cidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, duas meninas de 12 anos esfaquearam 19 vezes uma colega. A vítima sobreviveu milagrosamente (“Por uma questão de milímetros”, informaram os médicos), mas a maior surpresa estava na motivação do crime. Interrogadas pelos investigadores, as duas menores contaram que haviam planejado o assassinato para provar ao mundo a existência do personagem. “Muitos não acreditam que o Slender Man é real e (nós) queríamos provar que os céticos estão errados”, teria dito uma delas à polícia. Alguns dias depois, foi a vez de uma mãe de Ohio ser atacada pela própria filha com uma faca. Ferida no braço, a mulher disse a uma rádio local que a menina “parecia outra pessoa” e que era obcecada pelo personagem. “Ela falava em matar”, relatou a mãe.

Chocada com os acontecimentos recentes, a opinião pública americana ainda tenta entender o que há por trás do fenômeno. Ameaça ou não para a sociedade, o fato é que o “Homem Delgado” fascina porque resgata um tipo de criação coletiva até então perdida, tanto em sua construção quanto em sua difusão. Trata-se de uma transfiguração das antigas lendas orais, que passavam de geração em geração ganhando novas camadas. Agora, a obra em progresso é redimensionada pelas novas possibilidades digitais, que lhe permitem se manifestar sob diferentes mídias (hiperlink, vídeo, imagem, blog ou hashtag). É a mitologia se adaptando à era dos memes.

– O que aconteceu em Wisconsin foi trágico. Os pânicos morais que se abateram em torno do Slender Man, no entanto, eclipsaram o fato de que o personagem foi construído em espaços colaborativos, onde os indivíduos encontram recursos criativos e podem fazer trocas entre eles para criar arte – diz a pesquisadora americana Shira Chess, PhD em comunicação e retórica pelo Instituto Politécnico de Rensselaer, e autora de um estudo sobre o personagem. – E isso é algo totalmente novo e excitante. As pessoas estão contando histórias e leitura de histórias. É importante não ficar tão preso na tragédia a ponto de renegar o potencial que a internet oferece para facilitar este processo.

Shira lembra que, no passado, os folclores tradicionais levavam séculos para se desenvolver até chegar à forma ou às formas que conhecemos hoje. As histórias de vampiro, por exemplo, tiveram muitas variações em seu início antes que finalmente se estabelecesse um determinado conjunto de características que hoje entendemos como “vampiro”. Com Slender Man, aconteceu algo muito parecido, só que via crowdsourcing online e num ritmo muito mais acelerado.

Outra característica importante do personagem é ter desafiado o conceito do copyright. Nos tempos atuais, os mitos sofrem dificuldade de se propagar livremente, bloqueados pelos direitos autorais. Embora tenha um criador original (um certo Victor Sturge), Slender Man nasceu e evoluiu como uma obra aberta. Só depois de ser difundido entre internautas é que se tornou um produto cultural (aparecendo em filmes e jogos, por exemplo), e não o contrário.

– O que realmente me fascina na evolução do Slender Man é que o gênero foi sendo negociado organicamente por muitas pessoas – acrescenta Shira. – Assim que Victor Sturges lançou a primeira versão online do personagem, o poder comunitário tomou conta da história, permitindo que ela fosse desenvolvida de forma orgânica. Isso significa que ninguém mais tem controle sobre os mitos. Eles têm vida própria e sempre há um risco de que um indivíduo, ou indivíduos, possam interpretar ou reinventar a história de maneiras diferentes da ideia original.

“Identidade e anonimato”

Para a cientista social Simone Pereira de Sá, o fenômeno Slender Man também traz à tona uma vocação para o sobrenatural que tentou ser sufocado pelo racionalismo.

– A cultura moderna da razão tentou instaurar um modelo que quer explicar tudo, sem deixar espaço para o mistério – explica Simone, professora da UFF e doutora em comunicação e cultura. – O Slender Man faz aflorar um imaginário do medo, da lenda e do terror que sempre esteve aí, provando que a cultura letrada não acabou com ele. Não surpreende que aconteça na internet, que sempre teve uma linha direta com essa construção da oralidade. Desde cedo, o imaginário da internet é marcado por mitos, como o bug do milênio.

Por ser uma história de muitos mediadores, ela foge da autoridade dos especialistas, lembra Simone. O rosto do personagem, aliás, não é indefinido por acaso: nele cabem muitos outros arquétipos arcaicos e contemporâneos, que o personagem não cansa de reprocessar. Sua figura pode fazer eco tanto ao Der Großmann do século XVI, um monstro do folclore alemão que atacava crianças na floresta, quanto ao Pedobear, um meme dos dias atuais que retrata um urso pedófilo. Para Shira, o Slender Man representa uma série de ansiedades culturais, como a perda do senso de realidade (o que explicaria a espécie de transe das meninas americanas), o diferencial de poder, além do medo de identidade e anonimato.

– Por diferencial de poder, entendo que as histórias mostram como as vítimas estão desempoderadas en relação ao Slender Man – opina Shira. – Suas vítimas enfrentam a incapacidade de comunicar seus medos a uma cultura que não os entende. Em termos de “identidade e anonimato”, creio que não é uma coincidência o fato de a história emergir em um tempo e espaço semelhante ao do Anonymous e do movimento Occupy.

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Bolívar Torres, do Globo