Faça o teste e tire o som de um jogo da Copa. A partida melhora. O difícil é se acostumar ao silêncio. Parece que falta algo, não se sabe o que. A ausência do narrador faz com que apareça você mesmo: a sua solidão, o seu vazio, a sua crispação diante do jogo.
O narrador é uma relíquia do tempo em que não havia transmissão eletrônica. Ele cumpria a missão de contar o jogo que havia visto no campo. Seu tempo era o passado, passível de análise e edição. O locutor era Homero.
Veio o rádio e o narrador passou a contar o que via na hora, de corpo presente. Assumiu o papel dos contadores das antigas sagas islandesas, que desconhecem o que ocorrerá daqui a pouco, no minuto seguinte. Sua matéria é o ato imediato dos homens.
Com a televisão, o narrador perdeu a função precípua. Se contar o que vê, é redundante: narra o que é compartilhado pelos espectadores. Não pode ver mais nada porque está confinado numa cabine. Quem pode complementar as imagens são repórteres no campo, e não o narrador. Quem diz alguma experiência vivida é um jogador aposentado, não ele.
No estádio, o narrador não faz falta. Ali, os barulhos das gentes, dos chutes, do apito do juiz e dos rojões, a temperatura, as cores e odores, formam um todo, o jogo.
Na televisão, a voz espectral do narrador se sobrepõe a tudo, impõe a retórica de quem não tem nada a dizer – mas segue falando sem parar.
A arte narrativa
Antes de o jogo começar, e entre o primeiro e o segundo tempo, o narrador aparece de corpo inteiro, deixa de ser exclusivamente uma voz. Isso é bom porque a narrativa não é feita exclusivamente com a garganta. O narrador oral usa as mãos e os gestos para sustentar o fluxo da voz.
Mas não o narrador da Copa. Ele está espremido na tela entre dois outros, que limitam a sua gesticulação. Volta então a ser só voz, mas sem ter o que narrar entedia até a si mesmo. Melhor ver noutro canal a repetição de jogadas. Qualquer coisa é melhor do que aquela voz.
A voz açula, apupa, adula. Repete sem pejo bordões desde sempre fora do tempo: “Bem, amigos…” O narrador nunca é neutro, mas se apresenta como isento e arauto do bom senso. É célebre como os artilheiros, apesar da incapacidade de ser gandula. O narrador é um chato. No entanto, lá está ele, se achando.
O locutor esportivo pontifica porque é crescente a aversão ao silêncio e ao pensamento próprio. Com o seu palavrório redundante e sem significado, desaparece o dom de ouvir, desaparece a comunidade dos ouvintes.
A quem não pôde ouvi-lo, os ouvintes repetiam aquilo que o narrador lhes havia contado. Não mais. Todos ouvem os mesmos narradores de meia dúzia de canais, não repetem suas histórias, sequer os escutam.
O narrador é imprescindível porque uma partida de futebol é diversão. E divertir-se é estar em consonância com o mundo e de acordo com o mundo, é não ter que pensar e esquecer o sofrimento à espreita.
“Vai, vai, vai, disse o pássaro: a humanidade não suporta muita realidade.” O futebol distraía até T. S. Eliot. O narrador nos distrai da diversão. É o líder da fuga do real.
Para liderar, o narrador explica aquilo que o torcedor está a ver, rebaixa-o à condição de ignorante, dissolve o seu discernimento. Cobre com um arrazoado de gritos podres o drible, o passe, a cabeçada; explica que foi gol.
A verdadeira arte narrativa está em evitar explicações. Em deixar que a pessoa pense o que quiser acerca daquilo que conta. Em prezar a liberdade de quem escuta. Por isso, a grande narrativa – dos contos de fada a Proust – não se esgota jamais. A narrativa viva abraça a história como a hera, o muro.
Já o narrador da Copa se esgota e se dissolve assim que silva o apito final. Resta em nós a lembrança tênue dos lances que sobreviveram à sua voz.
******
Mario Sergio Conti é jornalista