No jogo da tarde desta quinta-feira (12/06) poderá se aquilatar a quantas anda a tecnologia dos espetáculos mundializados. O Oscar e o Super Bowl, de raízes nacionais por demais marcantes, não são ainda páreo para a Copa. E o número de câmeras, a variedade dos cortes, o som dos chutes, os closes e as panorâmicas, a repetição de lances e a nitidez da transmissão configuram o futebol de hoje. Sem imagens, não há jogo.
Como a tecnologia não brota embaixo das traves, nem sempre foi assim. Houve Copas sem rádio, sem televisão, sem alta definição, sem tela plana ou de plasma. A cada ganho na transmissão correspondeu uma redução da imaginação. O torcedor que lia o relato do jogo, no jornal do dia seguinte, fantasiava a partida a partir de poucos parágrafos. Anos depois, quem escutava o jogo no rádio precisava de menos imaginação para criar imagens mentais. Com a tevê, a imagem suplantou a imaginação. A tecnologia aproximou o espetáculo do espectador.
Os ganhos tecnológicos de agora são bem mais modestos, por exemplo, do que a transmissão em cores, difundida no Brasil a partir da Copa de 1974. O produto mais alardeado é o detector automático de gols – as 14 câmeras que atestam se a bola de fato entrou e transmitem a informação para um relógio no pulso do juiz. Em matéria de progresso, é ridículo. Para que esse rigor todo? Futebol não é ciência, um gol é apenas um gol, a imprecisão e o equívoco fazem parte do jogo. Saem perdendo os comentaristas de mesas-redondas, pois que terão um assunto a menos para as suas aborrecidas discussões de fim de noite: o oitavo gol da Argentina sobre a Nigéria valeu ou não?
Fracassaram para a Copa do Brasil a transmissão 3D e a 4K, que propicia uma resolução mais apurada – segundo dizem, mas é bom não confiar porque os fabricantes sempre exageram a qualidade do que querem vender. A Fifa, no entanto, que não dá ponto sem nó, gravará todos os jogos no sistema 4K, para a sua posterior venda aos fanáticos, e também para propagandear as próximas Copas.
A tecnologia mais marcante estava prevista para a Copa de 2022. Na disputa para sediá-la, o Japão apresentou um projeto de difusão mundial orçado em US$ 6 bilhões. Previa-se que 200 câmeras de vídeo captariam os jogos em 360 graus. Dezenas de microfones nos gramados registrariam até o suspiro dos jogadores. As imagens seriam reconstruídas holograficamente em estádios de todo o mundo.
O potencial do engenho é fascinante: xingar num estádio de Cascadura a mãe da holografia de um juiz búlgaro que marca um impedimento em Tóquio. O futebol voltaria a ter aura, e ainda por cima fantasmagórica. Não haveria quebra-quebra de bandos organizados, já que as torcidas nacionais ficariam nas cidades de origem, sem se darem à pachorra de ir ao outro lado do mundo para azucrinar a paciência alheia.
Quem são os inimigos?
A realidade da corrupção refreou a ficção científica. A Fifa, sempre ciosa dos seus interesses, fez com que corresse muita grana, e a Copa de 2022 acabou indo parar no Catar. A tecnologia holográfica terá que buscar outros investidores. Mercado há: os fãs dos vagidos em playback de Mick Jagger, tietes das bordoadas de brutamontes do UFC, a plateia das vulgaridades dos reality shows – os adeptos do velho e bom sexo & circo, em versão up-to-date.
Sem a técnica, fique-se um pouco com a imaginação: qual seria o mundo da holografia? Para responder, parta-se do que é dito em A miséria da filosofia, um livrinho fora de moda: “O moinho manual dará o senhor feudal; o moinho mecânico, a sociedade com o capitalista industrial”. Vem aí a sociedade da irrelevância do ser vivo.
Há outro incremento tecnológico em andamento, o militar. Ele foi montado porque a Copa que começa hoje é um marco da mercantilização planetária. Jamais se venderam tantos produtos para um mercado tão coeso mundialmente. Pródigo em produzir camelôs e outros restolhos do mundo trabalho, o Brasil foi compelido a varrê-los da frente dos estádios. Chamou então os milicos para a higienização. Nada como a manu militari para serviços de limpeza.
O general José Carlos de Nardi, chefe do Estado-Maior da Forças Armadas, disse anteontem que houve um ganho significativo para o Brasil no aprendizado de defesa química, biológica, radiológica e nuclear. Afora a sofisticação tecnológica, nunca se viu tanta força bruta na rua, embora não haja terroristas à vista. Quem são os inimigos? São os grevistas e a galera que se insurge contra os supereventos da globalização: reuniões do FMI, do G-8, do Banco Mundial, Copas e Olimpíadas. As forças armadas e a polícia garantem o livre – e, por que não dizer, sagrado – trânsito de mercadorias e consumidores, de jogadores e torcedores. O gol é o gozo desse mundo sem gozo.
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Mario Sergio Conti é colunista do Globo