É um erro enviar a tropa para policiar favelas e ruas das cidades. As razões são facilmente identificáveis: desgaste da reputação e imagem das forças armadas, conflitos entre o governo e os militares, repercussão negativa do já agudo drama da violência na imprensa, principalmente no exterior. Tudo isso, porque não cabe às Forças Armadas exercer o papel de polícia e, portanto, essa atividade não faz parte do seu treinamento e muito menos da sua cultura. Os fatos ocorridos durante a recente ocupação do Morro da Previdência, no Rio de Janeiro, pelo Exército são emblemáticos dessa realidade.
Ficam, contudo, as questões: por que insistir numa ação que, é sabido, está condenada ao fracasso? Possui ela outro interesse além da compulsiva tentação autoritária de acreditar que o Exército resolve tudo aquilo que a sociedade civil se considera incapaz de resolver? Em ambos os casos, as respostas passam pela visão que a elite brasileira – leia-se em sentido amplo – vem teimando em alimentar com relação à realidade do país. Em primeiro lugar, há crescente insistência em fechar os olhos para as verdadeiras raízes da violência urbana que se encontra, não nos morros, mas na exclusão social.
Esse é um dos personagens centrais da trama. Não são as Forças Armadas que irão desvendá-lo. O Brasil fez sua revolução industrial entre os anos 1940 e 50, atraiu grandes massas do campo para as cidades e não encontrou ainda meios para incluí-las no sistema econômico. Em paralelo, o Estado foi gradualmente deixando de estar presente, salvo na aparência, nos vastos territórios das favelas que hoje são comuns de um extremo a outro do país, inclusive em cidades interioranas. Nos anos do regime militar, essa dolorosa evidência foi disfarçada por índices de crescimento elevados, em particular nos idos do milagre, mais quando o milagre se revelou ilusório, a verdadeira face da exclusão se fez presente. E, com ela, os índices crescentes de violência.
Imagem e reputação
Se deixarmos de lado a exclusão social, vamos nos defrontar com outro dilema igualmente inquietante. Está sintetizado numa escolha do tipo hamletiano: ser ou não ser uma grande nação democrática. Um país escreve sua história no momento em que faz opções de construir sua própria identidade. Foi assim na América, na França revolucionária do século 18 e na Alemanha de Bismark, por exemplo. O Brasil fez algumas tentativas nesse sentido, mas em todas as ocasiões ficou no meio do caminho. Faltou fôlego, faltou visão. Sempre pareceu mais fácil chamar as forças armadas para resolver os impasses.
É o que a história registra, e com pesar, em 1937, nos tristes anos do Estado Novo, e no ciclo militar pós-1964. A contrapartida negativa foi o enfraquecimento das instituições, o atraso na construção de uma democracia autêntica e a ilusão, sempre ela, de que estávamos crescendo no mesmo passo da economia internacional, quando na verdade, estávamos perdendo terreno. É, em grandes linhas, a síntese do que ficou para trás. Abandonou-se o compromisso com a democracia para disfarçar um modelo político, o autoritarismo, que é oco como um anel.
Agora, se tenta reeditá-lo por outros meios. Em lugar do combate ao comunismo, o artifício do passado, se busca o caminho da força para tentar revolver a candente questão da exclusão. É o que se encontra por trás do recorrente apelo à idéia de colocar a tropa na rua. É um recurso aparentemente fácil. Não é. Mudam os personagens, mudou também o roteiro e o cenário. O Brasil mudou. Vem exercendo sua vocação democrática. Esse sentimento está arraigado no dia a dia da sociedade. Daí, a recusa, por exemplo, à revista, que sem dúvidas fere o direito à cidadania, que acabou por levar três jovens à morte no Morro da Previdência e a evolver militares num ‘abominável’ episódio, para usar a adjetivação do presidente Lula, que só danifica a imagem e reputação do Exército. Mas traz, também à luz, as ambigüidades e contradições da democracia brasileira.
Chave do êxito
A polícia, por mais despreparada que seja, tem o hábito desse tipo de trabalho, que, infelizmente ainda faz parte do cotidiano. Seus atos de violência são julgados fora de contextos políticos. Seus choques com a população são resolvidos em fóruns tradicionais. Com as Forças Armadas é diferente. Pela própria natureza das suas funções, a defesa da soberania nacional, o conflito institucional torna-se inescapável.
E nesse momento que surge uma nova questão. Por que o Exército não se posiciona? Por que não deixa claro para o governo e a nação que esse não é o seu papel, como o fez no Império quando se recusou a caçar escravos fugitivos? Talvez, porque ainda se considere um corpo à parte da sociedade e sinta dificuldades de se adaptar à natureza conflituosa, mas não belicosa, da democracia.
Há muitas lições a serem tiradas dos tristes episódios que marcaram a passagem do exército no Morro da Previdência. Uma delas é que soou o momento de pensar efetivamente qual é o papel das Forças Armadas na sociedade brasileira. A democracia exige que se olhe para esse tema de frente, sem mistificações e sem a trágica cultura de virar as costas para os problemas pensando que se pode adiá-los. A chave para o êxito não está na tentativa de envolver o Exército em problemas que pertencem à sociedade civil. Está, sim, na compreensão e prática do seu papel na construção de uma grande sociedade democrática como é o caso do Brasil dos dias atuais.
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Jornalista, professor da ECA-USP e diretor-presidente da Associação Brasileira de Comunicação Empresarial (Aberje)