Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vera Guimarães Martins

No jornalismo não vale aquela propriedade matemática que afirma que a ordem dos fatores não altera o produto. Ao contrário, qualquer inversão de fatos ou fatores pode fazer diferença.

A Folha foi atenta e crítica em todo o período de preparação pré-Mundial, cumprindo seu papel de fiscalizar o poder público. Com a chegada do torneio, porém, essa postura parece ter balançado sob o efeito de tudo o que está em jogo.

Como ombudsman há pouco mais de um mês, minha impressão é que a primeira piscada se deu em 23 de maio, quando o jornal saiu com a manchete “Copa custa só um mês dos gastos de educação”.

A ideia era ótima, e a reportagem teve o grande mérito de deixar de lado os chutes impressionistas, que variavam conforme a filiação do freguês, e de tentar estabelecer uma ordem de grandeza dos custos reais. O tropeço mais visível foi a inclusão indevida e desnecessária da palavra “só”, que estabeleceu um juízo de valor e editorializou o título.

Além disso, o cálculo incluía não só os investimentos mas também as despesas de custeio da área de educação, um critério questionável. Mais correto seria comparar com uma obra de infraestrutura, como a usina de Belo Monte. Nesse caso, os gastos eram quase equivalentes.

A combinação das duas situações gerou uma manchete extremamente positiva para governos de qualquer esfera de poder. “Ao equiparar alhos e bugalhos, investimento com custeio, parece mais uma peça de propaganda do que propriamente jornalismo”, escreveu um leitor.

Antes que me atirem pedras, informo que não sou contra a Copa (a esta altura do campeonato, é burrice) e acho bobagem torcer contra a seleção. Mas acho, acima de tudo, fundamental que os jornalistas mantenham o distanciamento e fujam do comportamento de torcida.

Com a Copa dentro de casa, é muito fácil ultrapassar a linha, e a comparação das primeiras páginas nas edições de quinta (12) e sexta (13) são exemplos bem claros disso.

No dia da abertura, o evento ganhou tratamento reservado às notícias de maior impacto: título em seis colunas e duas linhas, chamadas em letras maiúsculas com estrelinhas e uma imensa foto do gramado do estádio. O conteúdo era monotemático: só deu Mundial.

A notícia da prisão do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e o bloqueio de US$ 23 milhões em contas secretas na Suíça foi relegada a um título pequeno, sem texto, no pé da página. A suspensão da greve do Metrô entrou em duas linhas no final do texto da manchete, e Joaquim Barbosa expulsando o advogado de José Genoino do plenário do Supremo Tribunal Federal ficou escondido em um sumário ao lado da placa do rodízio.

Ainda assim, era possível justificar a escolha. O jornal aproveitou a abertura para fechar o balanço de promessas e realizações, discutiu o legado do torneio, ouviu defensores e detratores. O enunciado “Copa começa hoje com seleção em alta e organização em xeque” era equilibrado e fornecia o contexto completo para o devido registro histórico.

Na edição de sexta, porém, o lado torcedor superou o jornalístico. O Brasil venceu, como já venceu dezenas de outros jogos de estreia em Mundiais. Ainda assim, o resultado do jogo foi o que preponderou no título, nas linhas que o complementavam e também no texto. A hostilidade à presidente da República pela torcida no estádio, os conflitos de rua e os problemas de organização foram jogados para escanteio.

A primeira versão da capa, distribuída no interior paulista e em outros Estados, era mais fiel ao clima reinante na abertura da Copa. Na última edição, que circula na Grande São Paulo e em Brasília, a disposição equilibrada das várias vertentes da notícia cedeu espaço à celebração. Neymar ganhou o jogo.

Segundo a Secretaria de Redação,”o norte” para escolher o título em ambos os casos foi a importância jornalística. “Trata-se do maior evento esportivo do mundo, que tem lugar no país pela primeira vez em 64 anos e cuja organização e realização ajudaram a levar milhares às ruas nos últimos meses.”

A capa de sexta transformou esse último aspecto em coadjuvante.

******

Vera Guimarães Martinsé ombudsman daFolha de S. Paulo