Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Preferência internacional

Henfil, o saudoso e brilhante cartunista brasileiro, nos anos 1980, escreveu, dirigiu e atuou em “Tanga — Deu no New York Times”. O filme contava, com humor, a história de uma ilha miserável, governada por um ditador que só acreditava no que lia no jornalão americano. O território, com 99% de habitantes analfabetos, recebia diariamente um solitário exemplar da publicação, incinerado após ser lido pelo mandatário, para não cair nas mãos de guerrilheiros. Tanga, nação representada no longa, não tinha imprensa; a verdade dos fatos era monopólio do “NYT”. Incrível é que, quase três décadas depois de lançada, a obra cinematográfica de Henfil ainda sirva de alegoria para explicar o Brasil.

Sete dias após o início da Copa 2014, o verdadeiro “New York Times” estampou nas páginas que as previsões catastróficas sobre o Mundial de futebol no Brasil não se concretizaram. O caos total, que a própria Fifa previra cem dias antes em reportagem no mesmo diário, fora reduzido a “soluços normais”. A competição estava ocorrendo com alto nível de emoção em campo, e as falhas existentes eram, até ali, desculpáveis. O texto enfileirou referências a problemas em edições anteriores de megaeventos esportivos. Nas últimas Olimpíadas de inverno em Sochi, na Rússia, hotéis não ficaram prontos. Atenas 2004 enfrentou greves de trabalhadores e deficiências na infraestrutura. Em Londres 2012, trabalhadores circulavam de capacete a uma semana da cerimônia de abertura.

Não tardou para versões traduzidas da reportagem do “NYT” varrerem as redes sociais. Internautas (mais ou menos entusiasmados com a Copa) fizeram do texto uma espécie de certificado de qualidade tupiniquim, como se os nativos fossem incapazes de produzir sozinhos igual diagnóstico.

Mazelas e virtudes

Impossível não lembrar da fictícia Tanga, com seu ditador temente ao diário estrangeiro e seus habitantes condenados à escuridão dos iletrados. Ou do complexo de vira-latas, expressão que Nelson Rodrigues, outro compatriota igualmente saudoso e brilhante na crônica e na dramaturgia, cunhou para definir “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face ao resto do mundo”. Ele se referia à profecia local de que a seleção sequer se classificaria na fase inicial da Copa de 1958, que acabou rendendo o primeiro título mundial ao país.

Pode ter a ver com algum carma colonial, que eternamente remete o Brasil às bençãos de um império dominante. Mas é estranho que o povo de uma nação independente há quase dois séculos ainda precise do aval estrangeiro para se sentir mais ou menos satisfeito com as próprias limitações e potenciais. O entusiasmo brasileiro não deve nascer quando a britânica “The Economist” anuncia a decolagem nacional. Nem desaparecer quando, anos depois, a mesma revista insinua a derrocada.

Em visita ao Brasil em 2012, o jornalista Paolo Mieli, ex-diretor de redação do “Corriere della Sera” e do “La Stampa”, contou como colegas da Itália recorreram à opinião pública internacional para denunciar escândalos do então primeiro-ministro, Silvio Berlusconi. Empresário poderoso da imprensa local, ele acabou desmascarado pela mídia do resto da Europa e dos EUA. Os italianos usaram veículos de comunicação estrangeiros para estampar mazelas que não ganhavam espaço no próprio território. Os brasileiros andam recorrendo a visitantes de fora para tomar conhecimento até de suas virtudes.

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Flávia Oliveira, do Globo