Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Jornalismo de combate à hegemonia na imprensa

Graças a Maria do Socorro Furtado Veloso, este jornal [Jornal Pessoal] se tornou motivo de livro: seu Imprensa e contra-hegemonia – 20 anos do Jornal Pessoal (1987-2007), foi lançado neste mês [junho], em Belém, numa edição da Paka-Tatu. São quase 300 páginas de relatos, análises e interpretações exaustivas sobre todas as edições do jornal nesse período, lidas com atenção e competência.

Fiquei muito feliz por acompanhar a trajetória de Socorro desde a redação dos jornais onde trabalhou até a sua consolidação como doutora na academia, agora em Natal, no Rio Grande do Norte. Fiel ao tema, ela foi adensando a abordagem e valorizando o seu material de estudo, sem perder nunca a visão crítica, que é fundamental. Tornamo-nos amigos e mantivemos o mútuo respeito e admiração, apesar – e inclusive por causa – de eventuais divergências.

Para registrar a honra e o orgulho de ter merecido a atenção de uma pesquisadora exemplar, reproduzo o prefácio do livro, escrito pelo também jornalista, professor, pesquisador e santareno amigo Manuel Dutra. É um valioso convite à leitura do livro de Socorro Veloso. (Lúcio Flávio Pinto)

A presente geração conheceria muito menos ainda a Amazônia não fosse o Jornal Pessoal, ou simplesmente o JP, com o qual Lúcio Flávio Pinto busca, há mais de um quarto de século, colocar a nu aquela informação essencial sistematicamente ocultada pela mídia comercial.

Mas será, mesmo, que nos apercebemos dessa informação indispensável para nos situarmos, entre outras realidades, nas formas remanescentes da relação do Brasil com a sua melhor parte, como costuma dizer Lúcio, referindo-se à Amazônia contemporânea, entrelaçada pelo cipoal de interesses que a colocam no centro do presente debate planetário que tem esta região como um item destacado? Ou o fruto do esforço diuturno deste jornalista-sociólogo fica restrito a tão poucos, a ponto de o repórter/editor/proprietário de um conjunto de folhas tamanho ofício perceber que o produto de seu trabalho poderá ser mais visível à próxima geração?

Há, porém, outras maneiras de compreender o fenômeno, felizmente. Situado no seu tempo e espaço privilegiados, Lúcio Flávio percebe claramente as razões por que o seu jornalismo é melhor recebido fora da Amazônia. Cá entre nós, uma das explicações talvez seja a permanência daquele vezo colonial que tanto reluta em desalojar-se das nossas mentes, e que é denunciado de modo tão frequente e duro pelo autor do Jornal Pessoal. Preferimos ver-nos e ouvir-nos pelos olhos e pelo falar externos, atitude atávica tão ao gosto de setores dos grupos de poder descompromissados com a terra onde a contragosto nasceram e/ou onde residem sazonalmente, até a próxima viagem à metrópole.

Fronteira amazônica

Um texto ao mesmo tempo profundo e acessível, como, aliás, compete ao bom texto científico, este livro agora apresentado ao público pela jornalista Maria do Socorro Furtado Veloso resulta de sua tese de doutorado apresentada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, no dia 18 de março de 2008. Como integrante da banca examinadora, naquela ocasião eu me expressei mais ou menos assim:

“…o fato de que o trabalho de Lúcio é mais estudado fora da Amazônia. E parece que o pouco que existe [na região] se resume ao Estado do Pará. Não vi referências [na tese] a outros Estados da região. Interessante seria indagar o porquê desse, digamos, receio da Academia regional ao [quase] esquivar-se da análise desse fenômeno, sobretudo dos conteúdos levantados pelo JP que chama a atenção de pessoas e instituições de fora da região e de outros países. O reconhecimento local existe, tênue, iniciativa de poucos… Receio de indispor-se com os poderosos provinciais e provincianos, mesmo tendo Lúcio estado presente na Universidade Federal do Pará e em outras instituições públicas de pesquisa na Amazônia? Ou por não compreendermos a universalidade de um fenômeno que se produz na província?”

A decisão de esmiuçar estas e tantas outras questões presentes na já longa obra de Lúcio Flávio é que motivou a aventura exitosa de SocorroVeloso, que agora nos traz, na sua forma e na sua metodologia, a mais completa análise de um fenômeno raro no Brasil e no mundo: a obstinação e a teimosia de quem decide remar contra a maré que tende a nos acomodar e deixar o mundo, e a Amazônia, assim como estão. A Amazônia como quadrissecular colônia, da qual, assim como no passado, as metrópoles contemporâneas sentem-se numa espécie de direito divino de prosseguir retirando as riquezas que a natureza aqui depositou, em grave detrimento dos povos que aqui já estavam no século XVII, e dos povos que aqui estão em pleno século XXI.

Lúcio Flávio pode muito bem ser chamado de homem-jornal, tamanha é a simbiose entre ambos, a ponto de ele mesmo afirmar que este jornal é a minha pele, ou que ojornal é que me comanda ao invés de eu comandá-lo, ou que seja um auditor público informal. Seja como for, certo é que o autor do JP é um insubmisso, um intelectual público, um antagonista.

Quando recebi de Socorro Veloso a tarefa de escrever este prefácio, lembrei-me, por associação a outros jornalistas, do passado, das sentinelas em suas guaritas com as quais Cipriano Barata fustigava o mandonismo da Corte d’além-mar e, em seguida, do Império, pelo que pagou caro. Barata, inclusive, foi a inspiração, pouco antes da guerra dos cabanos (1835-1840) que se alastrou pela Amazônia, do surgimento da Sentinela Maranhense na Guarita do Pará, obra de Lavor Papagaio. Antes dele, outros se insurgiram, como o pioneiro João Francisco de Madureira, com seu panfleto intitulado O despotismo desmascarado ou a verdade denodada, exemplos de insubmissão numa Amazônia que ainda não tinha esse nome.

Retornando ao mundo contemporâneo, faço minhas as palavras da própria autora deste livro quando afirma que as ideias do editor do JP interessam não só a jornalistas e/ou pesquisadores de jornalismo, mas a estudiosos dos mais diferentes campos do conhecimento. Da história da imprensa alternativa ao jornalismo científico e/ou ambiental, da análise geopolítica da Amazônia aos estudos sobre liberdade de imprensa, as ideias de Lúcio, de forma direta ou indireta, emergem em uma diversidade de produções relevantes. Nesses trabalhos ele é frequentemente apresentado como um jornalista que vive e trabalha na fronteira amazônica, sem que tal condição o impeça de demonstrar uma imensa capacidade de reflexão acerca das questões globais.

Caso solitário

Este livro, Imprensa e contra-hegemonia, que tem como subtítulo “20 anos do Jornal Pessoal (1987-2007)”, torna-se obra basilar a todos que queiram não apenas conhecer um jornalista e o seu jornal alternativo, ou outsider, ou qualquer outra designação que possa merecer, mas que estejam dispostos a desvendar o grave momento em que vive a região naturalmente mais rica do Brasil, de onde esta riqueza se esvai na direção dos centros dinâmicos do capital, no espaço nacional ou estrangeiro. E conhecer uma forma de jornalismo que se torna cada dia mais rara: aquela que não se contenta com fontes secundárias, com meras declarações, que busca os fatos e os atos onde quer que eles estejam, que os seleciona unicamente de acordo com a sua relevância social. Um jornalismo que produz o relato apenas comprometido com aquele princípio fundamental: tornar público tudo aquilo que não pode nem deve permanecer oculto, para o bem da cidadania e frustração, e ódio, daqueles que detêm o poder, nem que essa teimosia custe o preço de uma vida, como no caso solitário do amazônico/universal Lúcio Flávio Pinto.

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Manuel Dutra é jornalista, professor e pesquisador