Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O penúltimo capítulo da novela

No começo de maio, a terapeuta e consultora Anna Sharp recebeu um caderno muito antigo, no qual reconheceu imediatamente a letra de sua avó, Anna Emília Ribeiro (1872-1951), mulher do escritor Euclides da Cunha. O caderno, já com suas 45 páginas amareladas pelo tempo e sem data, é a sua versão sobre o episódio mais trágico de sua vida. Em 1909, Euclides morreu durante um duelo de honra com o seu rival amoroso e amante de Anna Emília, Dilermando de Assis (1888-1951), um enredo digno de novela de época.

Depois de passar uma noite em claro, fumando um cigarro atrás do outro, o escritor resolveu ir pela manhã até a casa do amante, no bairro da Piedade, zona norte do Rio de Janeiro. Ao chegar, anunciou: “Vim para matar ou morrer”. Dilermando, com 21 anos e cadete do Exército, levou dois tiros, mas Euclides, já com 43, foi quem acabou morto no jardim de sua casa, com quatro balas no corpo, numa segunda-feira nublada às 10h30 da manhã. O episódio ficou conhecido como A tragédia da Piedade e terminou com a absolvição de Dilermando, que alegou legítima defesa enquanto o país se consternava com uma morte infortunada e desacertadamente impune do autor de Os Sertões (1902). “Eu tenho que dizer o que sei sobre essa fatal tragédia […], e não agradar a uns prejudicando a outros. Não venho nem ofender, nem acusar. Venho cumprir com o sagrado dever: dar desencargo à minha consciência e ao meu espírito”, são as primeiras linhas do caderno de Anna Emília, que Sharp lê com o cuidado de quem tem medo de que as folhas desmanchem ao tocá-las.

Sharp se senta em uma poltrona na sala do apartamento de sua filha, nos Jardins, uma região de classe alta em São Paulo. Conta que o caderno chegou até ela por acaso, apesar de considerar a coincidência “um sinal” para que voltasse a escrever um livro que estava há cinco anos parado, Vozes do Passado, sobre sua história com a avó. “Um desconhecido me enviou parte do diário escaneado, por email”, explica a terapeuta carioca, que vive em Bananal, na Serra da Bocaina, divisa dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.

O conteúdo, de uma caligrafia harmônica e com palavras estendidas e espaçadas, revela que Anna Emília teve “uma vida sofrida, de humilhação e de muita violência por parte do Euclides”, explica Sharp, que já adiantou que não irá publicá-lo na íntegra. O motivo, consideração. “Não vou divulgar determinados trechos por respeito a um gênio que era psicologicamente doente”, disse. Anna Emília fala sobre este lado obscuro de Euclides na página oito do caderno: “Foi justamente o seu erro. Queria impor-me o amor, e pretendia-o por meio dos insultos e das brutalidades!”. Em outro momento, narra uma situação vivida na porta de casa. “Para mostrar-lhe que vivíamos na maior harmonia, fui recebê-lo à porta, dando-lhe o meu primeiro beijo na testa. Queria documentar a nossa amizade. Cruel decepção! Dando-me um empurrão, Euclides afastou-me de si dizendo: “Não gosto deste gesto de prostituta”. Estava dado o meu primeiro e último beijo, o osculus bellicus [beijo de guerra] que nos apartava de vez”.

O texto não está composto apenas de lamentações. Anna Emília também fala do amor que sentia por Dilermando e seu registro parece mais um resguardo do que uma doce lembrança – já que seu adultério foi condenado pela sociedade da época. Naquele momento, entretanto, se limitou a dizer: “O meu silêncio é a minha defesa”.

A pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que escreveu sobre a vida e obra do autor, Anabelle Loivos, acredita que todo e qualquer registro escrito deve ser lido em seu contexto. “É muito perigoso trazer à tona uma história insepulta, cheia de dados mal apurados. Não é correto interpretar essa história com a mentalidade de hoje”, argumenta, indo contra a ideia de que Anna Emília, que tinha 16 anos ao se casar, teria sido violentada e estuprada por Euclides, de 24. Na época, explica Loivos, essa era sua obrigação como esposa, ainda que lhe causasse certa repugnância fazer sexo com o marido que nunca amou, segundo conta no caderno.

O texto é eminentemente subjetivo. Segundo Luiza Nagib Eluf, autora de uma das biografias do escritor, Matar ou morrer, é necessário tratar o texto “cruzando as informações desse diário com as já apuradas até o momento. Não se trata de diminuir o valor dele como escritor nem de sua obra, mas de contar que em sua vida pessoal era, de fato, um egocêntrico”. De qualquer forma, o caderno de sua mulher deu um pouco mais de luz à ainda incompleta, pouco conhecida e mal documentada vida do grande escritor brasileiro.

A morte de um mito em um caderno “digno de museu”

O caderno escrito pela mulher de Euclides da Cunha mostra o lado mais negativo do escritor e acrescenta detalhes escabrosos ao seu já conhecido temperamento grosseiro, frio e pouco sociável. Alguns especialistas, no entanto, consideram que nem tudo relativo ao caráter do escritor foi bem explicado. “Sua mulher, Anna Emília, teve um papel fundamental na sua obra. E se ele de fato era um monstro, não teria dedicado a ela sequer um poema”, defende a pesquisadora Anabelle Loivos, que considera que a morte de Euclides permanece ainda como uma ferida aberta na história da literatura brasileira: “Não morreu um homem, morreu um mito”. Para ela, o escritor teve um papel preponderante na criação de um caráter literário genuinamente brasileiro, tarefa inconclusa por sua morte precoce.

Luiza Nagib Eluf, autora de uma biografia do escritor, considera o caderno descoberto “digno de museu”. Para ela é o único testemunho do ponto de vista da mulher escrito naquele tempo. Eluf considera que sua publicação “evitará a parcialidade machista em toda esta história”. “Foi algo muito triste para todos e ainda permeia a família, mas não se trata de um tabu. Na verdade, ainda se conta aos mais jovens. No fundo, foi uma lindíssima história de amor”, replica a neta, Anna Sharp.

O que sim foi um tabu, segundo outro pesquisador especializado na figura do escritor, Roberto Ventura, foi sua problemática relação com a mulher, sua representação literária e a forma de assumir a sua própria sexualidade. Euclides dedicou poemas a mulheres, apesar de assexualizar elas e trocar seus nomes por denominações de países ou abstrações, como Bolívia ou República, por exemplo. Assim se referia às mulheres que passaram pela sua vida, tanto em poemas como em cartas. Em Os Sertões, sua grande obra, não elogiou abertamente nenhuma mulher em concreto. Em suas descrições alternava as palavras bela e beleza ou outras muito mais duras e insultantes. O especialista acrescenta que costumava passar do grotesco ao sublime sem meio termo, sem parar em uma sensualidade real.

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Beatriz Borges, do El País