Ao decidir diversas questões que restaram em aberto na lei, juízes podem acabar criando critérios restritivos e, às vezes, indesejáveis
Aqueles que comemoraram a entrada em vigor do Marco Civil da Internet há uma semana parecem confiantes na existência da lei para garantir uma série de direitos dos usuários no Brasil. De fato, há conquistas, como a neutralidade da rede. Mas, ao contrário do que se imagina, a lei deixou muitas questões em aberto, cuja definição dependerá da interpretação do Poder Judiciário.
No caso dos pedidos de retirada de conteúdo por alegação de violação civil do direito à honra, por exemplo, a lei determina que os provedores de aplicações de internet só sejam responsabilizados se deixarem de cumprir ordem judicial específica nesse sentido. E caberá aos juízes decidir, no caso concreto, quando a retirada de conteúdo é admissível e quando não é.
Até aí, nenhum problema. O juiz é a autoridade legitimada para ponderar esses conflitos, cabendo a ele evitar que pedidos de retirada baseados em alegações infundadas cerceiem a liberdade de expressão. O problema está na forma como se apropriará dessa responsabilidade.
Em 2013, uma decisão judicial impediu um cidadão de publicar qualquer comentário na internet contestando a criação de três torres com 162 apartamentos em uma rua de São Paulo. No mesmo ano, outra decisão judicial impediu um advogado que fez críticas à atuação de um membro do Ministério Público de acessar qualquer rede social. Essas decisões confirmam que há um risco de que tais entendimentos se tornem comuns, consolidando uma jurisprudência extremamente restritiva.
O mesmo pode acontecer em relação à privacidade. De acordo com o texto do Marco Civil, as empresas de internet devem guardar os registros de acesso a aplicações de internet dos usuários (“logs”) por um prazo de seis meses. Esses registros deverão ser mantidos em sigilo e só deverão ser fornecidos à parte solicitante mediante ordem judicial.
Lacuna legislativa
Aqui, mais uma vez, o juiz é a autoridade mais adequada para decidir, no caso concreto, se o fornecimento dos registros é justificado. A privacidade do usuário deveria ser preservada sempre que não forem apresentados motivos suficientes para identificação.
Em pesquisa vencedora do prêmio Marco Civil da Internet e Desenvolvimento, organizado pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo e pelo Google Brasil, identificou-se que, em 47% dos casos, há decisão judicial deferindo o fornecimento desses registros em caráter liminar, isto é, antes mesmo da fase probatória. Vale lembrar que a entrega dos dados é irreversível.
Os casos ilustram circunstâncias em que a jurisprudência pode criar critérios restritivos –e às vezes indesejáveis– de interpretação da lei. Esses exemplos não são os únicos. O próprio funcionamento básico da rede ainda é matéria técnica de difícil apreensão pelos operadores do direito, o que não poderá ser ignorado na hora da aplicação da nova lei.
Antes do Marco Civil, o Poder Judiciário enfrentava com coragem, mas também com despreparo, a lacuna legislativa sobre regulação da internet no Brasil. Com a aprovação da lei, dependemos da sensibilidade daqueles que irão aplicá-la para manter vivos seus objetivos de garantir uma internet livre e aberta.
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Dennys Antonialli, 28, doutorando em direito constitucional pela USP, e Francisco Brito Cruz, 25, mestrando em sociologia jurídica pela USP, são coordenadores do Núcleo de Direito, Internet e Sociedade da Faculdade de Direito da USP