Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Por que não vaiamos Angela Merkel?

Nesta primeira fase da Copa do Mundo no Brasil, a mídia demonstrou que nem só de craques, dribles ou gols vive uma cobertura futebolística. A presença de representantes governamentais e da realeza mundial nas primeiras partidas comprova a importância da união entre popularidade e visibilidade que só o futebol parece conseguir.

Mas, em uma tentativa de conter os temas dentro das quatro linhas, a mídia brasileira perdeu uma boa oportunidade de pautar um outro gol canarinho: o Marco Civil da Internet. Na busca por ser um modelo para uma rede aberta e livre, ainda inédito em outros países, tal formato sobre os direitos digitais criou laços entre Brasil e a Alemanha de Angela Merkel para além do megaevento esportivo.

Porém, sobrepujada por dribles assertivos da mídia brasileira, que optou por relacionar a visita da chanceler alemã ao futebol, quase nada se ouviu sobre seu compromisso diplomático. Nem sobre sua política, tida como austera, que derrotou de goleada os portugueses antes mesmo das equipes entrarem em campo. Ao contrário do que ocorreu com Dilma, para Angela nada de vaias, somente alguns aplausos que ecoaram bem mais alto nas notícias do que no estádio.

Assim, quando em campo, a grande mídia mostrou que se deixa atravessar – em todas as editorias – por um protocolo próprio do jornalismo esportivo contemporâneo, no qual os critérios de noticiabilidade assumem uma tendência a valorizar o banal e ignorar o essencial. Exalta-se o espetáculo e suplanta-se o fato.

Um importante tópico

Seguindo esse modelo, a visita da chanceler alemã ao Brasil a convite da presidente Dilma assumiu tons de férias em solo baiano. Alçada ao posto de celebridade, as matérias sobre ela não se esforçaram em ultrapassar os flagrantes comportamentais do contato de Angela com a cultura brasileira.

Conhecida pela rigidez, os relatos que pipocaram na mídia seguiram uma descrição quase etnográfica desse encontro de culturas. Tom que marcou a narrativa de textos e imagens, como a notícia publicado na página de esportes do site de O Globo [“Angela Merkel acompanha a estreia da Alemanha na Copa”] que se esmerou em divulgar: “Logo que chegou, [Merkel] bebeu água de coco e pareceu gostar muito.”

Ao priorizar a “Merkel torcedora”, a mídia brasileira não focou na sua parceria com o Brasil, gerando somente “mídia espontânea” para a equipe alemã. Contudo, de acordo com o portal de notícias Deutsche Welle, o encontro entre Dilma e Merkel versou sobre diversos interesses comuns, como o comércio entre os dois países – a Alemanha é o parceiro comercial europeu número 1 do Brasil – e os empenhos mútuos sobre livre comércio entre Mercosul e União Europeia.

Para além dos temas comerciais, perdemos a chance de debater um importante tópico da pauta das duas governantes: a busca por uma política global da internet. Parceiros no embate à espionagem norte-americana realizada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) – da qual foram alvos –, os governos de Dilma e Angela foram protagonistas ao propor à ONU, em 2013, um projeto de resolução sobre o direito à privacidade digital, que parece estar só no início.

Meras peças publicitárias

Com a recente aprovação do Marco Civil da Internet – uma ação pioneira que se caracteriza por ser um instrumento normativo que assegura direitos e deveres pautados na cidadania no “caos” da rede –, a mídia brasileira perdeu o timing. E deixou passar em branco um bom momento para se instaurar um debate público sobre a questão que une duas importantes lideranças mundiais e diz respeito a todos.

A discussão sobre o Marco Civil leva a repensar o direito à comunicação e ao acesso à informação, bem como todo um modelo de cidadania – dentro ou fora da rede. Assim, é preciso levar em consideração que, com a ampliação e promoção de uma internet aberta e livre, o que se pretende não é só um maior contato com os diversos conteúdos ali diariamente incluídos, mas promover um acesso amplo à cultura e à educação por meio de um canal de comunicação que acata a pluralidade e a livre expressão responsável.

Com esse movimento, é de se esperar que tal acesso gere uma demanda que atinja diretamente os grandes monopólios da comunicação brasileira, que logo terão que rever não só seu modus operandi como todo seu modelo econômico e de negócios. Padrão este cunhado em um período tão conservador quanto autoritário, no qual ao mesmo tempo em que era incentivado o “salve a seleção”, abafava-se, de forma violenta, o grito por liberdade.

Nessa “batalha” por um modelo de internet livre e aberta, o que se percebe é que a aclamada liberdade de expressão não se separa da democratização mais ampla dos meios de comunicação como um todo. Para tanto, será preciso enfrentar a mobilidade de termos seminais para a comunicação social, como democracia e liberdade. Conceitos que não admitem simplificações e que, por isso mesmo, parecem nunca assumir, por parte da mídia brasileira, uma nítida conotação. Na dúvida, a mídia vai tateando de acordo com seus interesses. Por um lado, generaliza a presença da governante europeia em tchauzinhos amistosos e visitas caridosas e, por outro, localiza a presidente brasileira, e todo o seu governo, no aviltamento das vaias e xingamentos.

Em comum, um esforço midiático que acaba por desfazer as condições imprescindíveis de acesso à informação – capaz de promover a participação, o debate e a gestão pública e democrática de forma qualificada –, dentro e fora dos estádios, em prol de fazer de tais episódios, apenas, peças publicitárias.

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Lyana Thédiga de Miranda é jornalista, publicitária e doutoranda em Educação