De repente, não mais do que de repente, do nada, fez-se o tal “clima da Copa”. A autoria é coletiva, impessoal, intransferível: obra da imprensa (ver “Enfim, o ‘clima de Copa’”). Tanto a nacional como a estrangeira cumpriu estritamente o seu papel ao denunciar com veemência e insistência as mamatas da FIFA, das entidades-cartolas, o atraso das obras, os custos astronômicos, os absurdos do planejamento e execução, a arrogância faraônica, o descaso com os contribuintes de cujos bolsos saíram os recursos para o grande circo e o desprezo pelo legado nas cidades-sede.
Quando a bola começou a rolar, tudo mudou. Críticos e céticos se dividiram por origem: preparados para o pior e imunizados pela complacência inata dos turistas, os estrangeiros enfiaram-se no trabalho enquanto os nativos não tiveram alternativa senão submeter-se à ditadura do oba-oba e à obrigação travestir-se em promotores de eventos. A indústria da mídia precisa de receitas; sem a mobilização para o “clima de Copa” e para a festança, a cobertura ficará no vermelho. Então, vamo qu’ vamo, o pobre patronato precisa faturar.
Ninguém poderia imaginar que a contribuição dos fados ou da Divina Providência seria tão generosa: jamais se assistiram a tantas e tão formidáveis surpresas num torneio geopolítico-desportivo. É possível que candidatos, governo e oposição, queiram tirar partido dos placares. Não conseguirão. O que está tornando inesquecível esta 20ª edição do Campeonato Mundial de Futebol nada tem a ver com seus organizadores, patrocinadores e anfitriões.
As bruxas fantasiadas de zebras estão oferecendo uma inédita sucessão de espetáculos: os incríveis empenhos e desempenhos das seleções da Costa Rica, Argélia, Nigéria, Estados Unidos (e também alguns eliminados como México, Chile, Uruguai e Croácia) acrescentam novas dimensões ao fenômeno futebolístico e o convertem em algo muito mais rico e significativo do que a velha e enferrujada “caixinha de surpresas”.
Mea-culpa
A globalização econômica, os torneios continentais, o intenso intercâmbio de técnicos, atletas e estilos, tornou o esporte-rei um processo mercurial de socialização e interação. As partidas estão sendo tão lindamente disputadas que as torcidas, até então acríticas, cansaram-se do tribalismo e começam a se tornar apreciadoras da arte e do virtuosismo, independente das cores dos uniformes.
O que nos leva à “família Scolari” e suas atuações casuais, aleatórias. Vitoriosa, porém frustrante, ganha no placar e claudica na oferta de prazer. Impossível não comparar suas exibições com o brilho e a gana mostrada tanto pelas zebras como pelos leões. O único país pentacampeão com 200 milhões de técnicos de futebol deu um salto de qualidade, no ano passado aprendeu a protestar e, agora, a exigir qualidade. Recusa a improvisação, a falta de propostas e a fragilidade emocional destes heróis sem fibra nem convicção.
O clamor nacional por mais eficiência no meio de campo ganhou conotações que transcendem o futebol. Vai ao âmago das nossas mazelas. O país quer competência, quer consciência, quer desfrutar do mesmo futebol padrão Fifa ora vigente nos demais selecionados.
E a imprensa especializada, desta vez, não pode reclamar: apoiou sem restrições a convocação dos jogadores pela Comissão Técnica. Ninguém chiou ou esperneou, todos assistiram impassíveis à condenação de alguns craques ao prematuro ostracismo.
A Copa das Copas para ser efetivamente superlativa – uma Copaça – exigirá mudanças profundas. E eventualmente muitas retratações, confissões e um mea-culpa a ser entoado à capela: erramos.