Numa delegação em que o assessor de imprensa fica no banco, ao lado da comissão técnica e dos jogadores reservas, e se envolve numa briga com jogadores adversários – no caso, chilenos –, o impossível pode acontecer.
Contra todas as regras elementares de relações públicas, que é o nome correto para o trabalho de assessoria, o técnico da seleção brasileira convocou seis jornalistas “amigos” para conversar.
O que significa isto? Em primeiro lugar, que o bom jornalista – para a fonte, obviamente – é o jornalista confiável, que serve aos seus interesses. Em segundo lugar, que os demais jornalistas podem até não ser inimigos, mas amigos não são. Isto é, não são confiáveis, podem dizer o que não devem. Em terceiro lugar, que a fonte pode estabelecer um convívio privilegiado com um grupo de jornalistas.
É preciso deixar claro que quem exerce uma função pública não pode discriminar ninguém. A regra desse jogo é desobedecida com frequência maior do que o aceitável: aconteceu, por exemplo, no anúncio do Plano Collor, quando a ministra da Economia subitamente deixou a coletiva e de repente estava numa exclusiva com então a âncora do Jornal da Globo. Mas quem exerce função pública não deveria agir assim, deveria tratar todos os jornalistas de maneira igual.
Quando quisessem falar, deveriam convocar entrevistas coletivas. Nada impede, claro, que repórteres tentem uma exclusiva, mas isso vai do empenho e da capacidade de cada um. Porém, quando a iniciativa é da fonte, e se essa fonte está investida de função pública, o procedimento não pode ser outro. Eticamente, não pode.
Entrevista seletiva
No entanto, hoje tudo é controlado por assessorias. No caso de grandes eventos como a Copa do Mundo, as coletivas de imprensa são sempre conduzidas de modo a restringir ao máximo o tempo e a quantidade das perguntas. No âmbito particular das delegações envolvidas na competição, a responsabilidade do relacionamento com jornalistas fica a cargo das respectivas assessorias.
Então, o que dizer da inteligência de quem convocou essa entrevista seletiva? Ninguém pensou que os excluídos ficariam sabendo e que publicariam uma versão nada amigável do encontro entre amigos?
Conversas reservadas sempre existiram, em qualquer área do jornalismo. Podem significar uma enorme promiscuidade entre fonte e jornalista. Podem ser uma coisa saudável, também: o cultivo de informações em off que municiam o repórter para uma apuração mais qualificada.
Um papo informal entre jornalista e fonte é absolutamente banal, sobretudo em situações como a da cobertura de um grande evento como a Copa, apesar de todos os controles da Fifa. Mas uma convocação explícita de um grupo de jornalistas para uma conversa, no meio de uma competição em que a seleção brasileira está rendendo flagrantemente abaixo do esperado, e por pouco não foi eliminada precocemente nas oitavas de final, cheira a um pedido de arrego patético tanto para as fontes quanto para os jornalistas.
Que os jornalistas tenham se prestado a esse papel, é algo que será preciso esclarecer melhor.
Ainda mais porque pelo menos dois desses jornalistas, Juca Kfouri e Paulo Vinícius Coelho, o PVC, ambos colunistas da Folha de S.Paulo e comentaristas da ESPN, são reconhecidamente críticos da CBF e da Fifa. Dos convidados, Juca foi o único a explicitar a situação e dizer o nome ou pelo menos o vínculo profissional dos demais: além de PVC, citou “ um da rádio Globo, outro da Band, um do jornal O Estado de S. Paulo e outro de O Globo” (ver aqui).
Não deixa de ser curiosa a ausência de jornalistas da Rede Globo ou do Sportv.
Os que ficaram de fora, como seria previsível, denunciaram o favorecimento: assim foi, por exemplo, no portal Terra (ver aqui) e no LanceNet, especializado em esportes (aqui), ambos ironizando a “mídia amiga”, a quem a comissão técnica pedia apoio contra um suposto complô da Fifa contra a hipótese de conquista do hexa, o que seria perceptível pelas arbitragens que estariam prejudicando o Brasil.
No Estado de S.Paulo (ver aqui) e no Globo (aqui) as reportagens foram feitas sem a menção ao contexto em que a entrevista ocorreu.
Mas, justiça seja feita, todas eram tão transparentes em relação aos problemas enfrentados pela seleção que não devem ter agradado quem convocou a “seletiva”.
Jornalistas conselheiros
Na Rádio Globo, o link informava: “Felipão convida seis jornalistas para conversa particular”. Importa reproduzir o trecho de abertura, que diz muito das relações entre jornalistas e fontes e de jornalistas entre si:
“Hoje o técnico Luiz Felipe Scolari convocou alguns jornalistas de confiança, com quem ele trabalhou e… enfim, aprendeu a admirar e a respeitar. Um desses colegas foi Osvaldo Pascoal, comentarista titular da Rádio Globo de São Paulo. Pascoal, quando a imprensa soube que alguns jornalistas estavam com Felipão foi uma ciumeira danada, eu falei, eu tô tranquilo porque Pascoal joga no meu time e a Globo vai ter as informações. Por gentileza, nos relate o que foi conversado”.
Pois é, que bom que o Pascoal joga no time dos eleitos. E o Pascoal relatou que Felipão queria ouvir os jornalistas, saber o que estavam achando do desempenho da seleção. Como se isto já não estivesse claro nas reportagens feitas até agora pelos vários veículos. Como se o técnico, a essa altura, precisasse de conselhos.
No fim, o jornalista da Rádio Globo apaziguou quem imaginou que o grupo tivesse sido escolhido para obter informações exclusivas:
“Não foi nada além do que já tenha sido feito. (…) A gente sentado pra conversar a respeito da seleção brasileira. Foi exatamente isso que aconteceu. Exatamente isso. A gente passando muito mais informação do que recebendo”.
E o colega, que o entrevistava: “Um papo entre amigos, entre profissionais amigos, que se respeitam”.
Na ESPN, as intervenções de Juca Kfouri e PVC foram críticas, embora confrontassem outro comentarista, para quem o problema da seleção não era emocional, mas técnico e tático: Felipão, com aquela conversa, estaria tentando aliviar a sua própria responsabilidade pelo mau desempenho do time, sem contar que foi ele mesmo, junto com o coordenador Carlos Alberto Parreira, que alardeou o favoritismo do Brasil nesta Copa, investiu em encenações como a entrada da equipe em fila indiana, com a mão no ombro – como nas antigas formações colegiais – e na emoção com que os filhos deste solo entoavam o hino nacional, até chegarem às lágrimas pela suprema responsabilidade de estar representando a pátria mãe gentil. Pressão demais que teria posto o time com os nervos em frangalhos (ver aqui).
Juca e PVC foram críticos de Felipão, mas não da sua própria participação nessa história.
Quanto ao técnico, a iniciativa de chamar essa “seletiva” pode ter provocado consequências inversas ao esperado, num momento particularmente delicado como o atual.
>> Em Tempo (incluído às 15h de 3/7): A convocação de seis jornalistas para uma conversa particular com a comissão técnica da seleção brasileira teve desdobramentos durante a semana: muitos jornalistas consideraram que a intenção era hipervalorizar a instabilidade emocional dos jogadores para fazer uma cortina de fumaça sobre os problemas técnicos e táticos do time. Seria mais uma jogada diversionista, para promover polêmica e evitar a discussão das questões mais relevantes. De todo modo, o resultado foi um desastre, pelo que saiu publicado: especialmente o comentário de Felipão sobre o seu arrependimento na convocação de um jogador, que inevitavelmente perturba um ambiente já conturbado e fragiliza emocionalmente o grupo às vésperas de um jogo decisivo. Importa fazer essas observações agora porque retornarei a esse tema e as interpretações sobre as consequências desse episódio vão variar conforme o resultado do jogo das quartas de final, em 4/7.
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O técnico e seus jornalistas – Cosme Rímoli
Debate sobre o caso no programa Linha de Passe, da ESPN
O caso Suárez
A imprensa uruguaia falou em comoção nacional. Não seria para menos, considerando o que disse Martín Aguirre, um dos diretores do El País de Montevidéu, sobre os mitos cultivados nas conversas entre avós e netos, sempre em torno de jogadores de futebol. E não um mito qualquer, pois os heróis não são os grandes virtuoses, mas os que se superam e jogam mais com o coração do que com o cérebro. Por isso, Obdulio Varela, o capitão da conquista de 1950, se eternizou na memória e é mais ídolo do que Schiaffino.
A dureza da punição da Fifa ao atacante Luis Suárez, que cravou os dentes no ombro de um adversário no jogo em que o Uruguai eliminou a Itália e passou às oitavas de final nesta Copa do Mundo, em 24/6, provocou mesmo essa comoção nacional.
A começar pelo presidente da República, José Mujica, que chamou os dirigentes da Fifa de “um bando de filhos da puta” e classificou de fascista uma sanção que, além da multa, da suspensão por nove jogos e dos quatro meses de exclusão de qualquer atividade relacionada ao futebol, também impediu o jogador de permanecer com seus companheiros no Brasil para a partida seguinte, quando o Uruguai acabaria eliminado.
Embora ressalvasse que a Copa não era uma guerra, mas uma festa esportiva, Mujica definiu a punição como “uma monstruosa agressão”, não apenas “a um homem, mas a um país”.
De agressor a mártir
A imprensa ajudou a criar o clima. Jornalistas uruguaios vestiram a camisa a ponto de aplaudirem o técnico da seleção ao fim de uma “coletiva” que tratou do caso e não admitiu perguntas. Um jornal estimulou o público a dar sugestões para “demonstrar ao mundo” sua indignação, perguntando no título: “Como você protestaria contra a injustiça?”. Também distribuiu um pôster e uma máscara do jogador, para que todos pudessem ser Luis Suárez.
O ídolo da torcida na Copa de 2010, o herói que em menos de dois meses se recuperou de uma cirurgia no joelho para entrar em campo a tempo de defender a Celeste em 2014, agora se tornava um mártir aos olhos dos seus compatriotas. Em seu artigo, Martín Aguirre citava o espanto dos estrangeiros. “Creem sinceramente que ele não fez nada de errado?”, indagou um jornalista espanhol. “Não ocorre a nenhum uruguaio pensar que Suárez, com sua atitude, prejudicou a chance de seus companheiros e de seu país na Copa?”, perguntou um comentarista inglês.
Dissimulações
Não, o erro de Suárez inicialmente nem foi considerado como tal: seria algo do jogo, e talvez nem tivesse acontecido exatamente como diziam – afinal, onde estavam as provas? Em sua defesa, o jogador seguiu a orientação dos advogados e disse que se desequilibrou e bateu com a cabeça, involuntariamente, no ombro do zagueiro. Diante das evidências, reconheceu o erro e pediu desculpas.
Não importava a reincidência – era a terceira vez que atacava um adversário a dentadas, já havia sido sancionado por isso –, não importavam os insultos racistas que lhe renderam uma punição severa há três anos: aos olhos do público uruguaio, de acordo com a imprensa local, Suárez era uma vítima. Mais que isso: era o símbolo de um pequeno país aguerrido, injustiçado pelos poderosos, representados por uma entidade interessada apenas nos negócios milionários do futebol. David esmagado por Golias.
Gozações e críticas
No Brasil, inicialmente as reações se dividiram: alguns pediam punição exemplar e pintavam Suárez com as cores do demônio, outros levavam tudo na brincadeira. Porém, as gozações publicadas na internet, logo após a partida contra a Itália – como as montagens em que o jogador aparecia com a focinheira do canibal no famoso filme O silêncio dos inocentes –, começaram a dar lugar a protestos contra a punição excessiva. Houve quem se referisse à história de vida de Luis Suárez, menino revoltado com a pobreza, como se isso pudesse explicar o destempero. Houve quem denunciasse o exagero da pena, considerando casos semelhantes ou mais graves: afinal, uma mordida pode ser uma aberração, mas não causa danos como outros tipos de agressão que já inutilizaram jogadores ao longo da história.
A propósito, começou a circular na rede um vídeo postado no ano passado, com o sugestivo título “O outro lado da verdade”, que, visto agora, funcionava como uma atenuante, pois comparava um mesmo tipo de agressão cometida por Suárez e outros jogadores, punida com pesos diferentes, e exibia muitas outras cenas de violência, algumas das quais com resultados gravíssimos, que não tiveram sanção ou foram tratadas de maneira mais branda ou menos dura.
Todos ou ninguém?
Ficava claro que o uruguaio era apenas um entre uma legião de vilões nos gramados. Mas a seleção de cenas poderia levar à seguinte – e nefasta – conclusão: já que não puniram os outros, ou não os puniram com a mesma dureza, então não deveriam punir agora. O que equivale a dizer: não deveriam punir nunca.
[Aliás, é exatamente esse o sentido do que escreveu um articulista no uruguaio El País (ver aqui): “Ou todos são punidos igualmente pelos mesmos atos, ou ninguém”. Assim, a justa defesa da isonomia acaba resultando na defesa da pura e simples impunidade.]
Contra a brutalidade
Mas talvez – como tudo tem sempre várias possibilidades de interpretação – este vídeo valha principalmente por mostrar como se ultrapassam sistematicamente os limites definidos pelas regras do jogo. Certo, ninguém ignora isso, mas a sensação é diferente quando se assiste a uma sequência de agressões chocantes ou perversas. Coisas que jamais deveriam ser aceitas e, se antes existiam e não eram flagradas, hoje são documentadas fartamente e precisam ser combatidas. Como todo esporte em que há contato físico entre os oponentes, o futebol é frequentemente violento, mas não pode ser desleal: é preciso deter a brutalidade e valorizar o talento.
Por ora, as atenções da nossa imprensa estão prioritariamente voltadas para as peripécias que envolvem a seleção brasileira, dentro e fora de campo. Passada a Copa, talvez possa retornar ao “caso Suárez” e explorá-lo em seu sentido mais profundo, que ultrapassa o fato específico e permite, já com o benefício do decurso de tempo, um debate menos marcado pelas paixões. Mesmo porque, sem controlar as paixões, ninguém ganha jogo.
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)