Wednesday, 27 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A autocensura é a lei na imprensa do país

Nos próximos dias vai ser decidido se quatro jornais equatorianos serão punidos por não publicar todos os detalhes da viagem que o presidente Rafael Correa fez ao Chile nos dias 13 e 14 de maio. Estava programado que ele iria receber um título de doutor honoris causa, embora também tenha se reunido com Michelle Bachelet e teve outras atividades. A denúncia, que esgrime como principal argumento que os jornais censuraram informação de interesse público, foi feita pelo coordenador do Observatório Cidadão da Comunicação. Mas não foi por iniciativa própria. A denúncia ocorreu depois de um discurso que Correa deu em 17 de maio em sua sabatina, um espaço emitido a cada sábado nos meios públicos. “Organizem-se, denunciem”, disse. “Estão nos roubando o direito de estarmos informados. (…) Eles [os meios] prestam um serviço público, o de informar. (…) É hora de reagir povo equatoriano!”, exortou o presidente depois de mostrar as resenhas mínimas que os quatro jornais fizeram sobre a viagem.

Esta é uma das 125 denúncias contra os meios (dados até o dia 20 de junho de 2014) que foram registradas com a Lei de Comunicação, que está fazendo um ano. A lei é o principal método de pressão do governo de Correa contra a imprensa, que produz consequências a ponto de um jornal, Hoy, ter decidido parar de publicar a edição impressa, por causa da, segundo eles, “gradual perda de liberdades” e da asfixia econômica. As queixas são contabilizadas pela Superintendência da Informação e Comunicação, um organismo criado para articular a lei. Carlos Ochoa, titular da entidade, assegurou na semana passada que apenas umas vinte denúncias resultaram em sanções administrativas. A maioria só resultou em advertências escritas, mas também ocorreram multas, como a que teve que pagar o jornal El Universo: 100.000 dólares (223.800 reais) por publicar uma caricatura que distorcia como foi a ordem de busca e apreensão na casa do jornalista Fernando Villavicencio, assessor de um deputado opositor e investigado por espionagem.

Essas poucas, mas instrutivas, reprimendas conseguiram desanimar uma parte dos meios de comunicação e seus jornalistas. Um encontro organizado na semana passada pela Fundação Andina para a Observação e Estudos de Meios assinalava a ausência de reportagens de investigação nos meios e como se prioriza a publicação de temas menos polêmicos ou que não tocam o governo. “Não se pode publicar notícias judiciais em início de investigação nem documentos com caráter reservado. Há artigos da Lei de Comunicação que limitam isso. A responsabilidade subsidiária faz com que os meios tenham restrições para publicar certas coisas pelas multas”, comenta um jornalista de um diário nacional que pede anonimato.

“Liberdade de expressão beira a libertinagem”

O informante reconhece que no trabalho jornalístico diário há investigações que ficam paradas pela impossibilidade de ter acesso aos funcionários públicos. “A lei diz que todas as notícias devem ser contextualizadas, verificadas e contrastadas, mas continua sendo uma prática não dar entrevistas nem informação aos jornalistas dos meios privados”, denuncia. “Os funcionários públicos dão como pretexto a falta de tempo e seus problemas de agenda, e às vezes soltam algum dado e depois ligam para dizer que esse dado é incorreto e que não podemos publicá-lo enquanto não derem o correto. Assim passa mais o tempo.” O jurista Mauricio Alarcón, da Fundação Andina para a Observação e o Estudo de Meios (Fundamedios), acha que o artigo mais polêmico da lei é o 10, relacionado com as normas deontológicas, onde “estão fundamentadas as ações por conteúdos discriminatórios ou incoerência de manchetes noticiosas”. Inclusive antes da entrada em vigor da lei já se antecipavam os perigos de que ficasse consagrada uma ética imposta pelo Estado.

O chefe de investigação do El Comercio, Arturo Torres, reconhece que o ambiente nas redações ficou estranho depois da aprovação da Lei de Comunicação. “Os julgamentos influenciaram os jornalistas para ter mais cuidado, mas além disso, no jornal estamos aproveitando para fortalecer a qualidade e oxigenar a agenda. Não nos concentramos apenas em morder o governo”, explica. A experiência de Torres com algumas fontes públicas é que estas criam dificuldades para entregar informações. “Isto atrasa a publicação e se damos algo incompleto em seguida vem a carta… Com isto quem perde é a sociedade. É preciso ir além desta briga entre meios, jornalistas e o governo.”

Para César Ricaurte, diretor da Fundação Andina para a Observação e Estudos de Meios, a Lei de Comunicação configurou um ambiente de autocensura. “Os meios têm equipes de advogados que revisam cada nota, o critério jornalístico não é mais o principal, o ator jurídico determina as publicações”, explica.

Mais que autocensura, o superintendente da Comunicação prefere falar de prudência. Como disse na semana passada, no aniversário da lei, “os meios de comunicação têm mais prudência ao tocar diversos temas. Todos os dias, os jornalistas destacam que no Equador existe restrição de liberdade de expressão, mas os próprios fatos demonstram que não é verdade”, afirmou. “Neste país existe tanta liberdade de expressão que beira a libertinagem”, opina.

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“Mentira comprovada” e outros escárnios

Todos os sábados, Rafael Correa conta suas atividades semanais nos meios públicos de comunicação. Estas sabatinas costumam incluir segmentos pensados para desqualificar os inimigos públicos do governo. Agora foram substituídas por seções como “A liberdade de expressão já é de todos”, cujo lema é “por um verdadeiro Estado de direito, e não de opinião”. Durante trinta minutos, desmente jornalistas, sobretudo os que fazem programas de opinião.

Dentro desse espaço, há partes fixas com nomes como “A caretucada” (O descaramento), A amargura ou “A cantinflada” (incongruência) da semana. A ideia é recuperar uma intervenção de um jornalista ao longo da semana no rádio, televisão ou vídeo, e passá-la várias vezes para escárnio público. De fundo há uma locução que explica a verdade oficial e coloca em dúvida o profissionalismo do jornalista. Costuma aparecer a foto do aludido, ressaltada com um círculo vermelho. Para finalizar, aparece um selo sobre o rosto do jornalista: “mentira comprovada” ou “má-fé”. Depois Correa retoma o que já se disse no vídeo – às vezes pede que volte a emitir parte das declarações do jornalista (ou a nota da imprensa) – e repete que a imprensa mercantilista é o principal inimigo de seu governo ou da revolução cidadã. Também são recorrentes os pedidos à audiência para que deixem de comprar jornais e assinala que eles não servem nem para amadurecer abacates. O público festeja e fica com uma das frases mais repetidas pelo mandatário: a imprensa corrupta.

A Superintendência da Comunicação considera que este espaço não está regulado pela Lei de Comunicação.

Não é um programa de conteúdo, argumenta, mas um ato de gestão pública. A Secretaria de Comunicação (Secom) agora monta redes nacionais para desmentir artigos de imprensa. Nestes espaços, são entrevistadas as autoridades implicadas ou são recolhidos testemunhos para remarcar que tal meio ou tal jornalista está errado e inclusive são colocados atores que leem os jornais aludidos e jogam as publicações no lixo.

A Secom não apenas retifica, mas também dá lições de jornalismo e entrevista acadêmicos que reafirmam o erro dos jornais. Isto pode ser parte da campanha de ataque aos meios empreendida pelo titular da Secom, Fernando Alvarado, desde o início do governo. Este funcionário reconheceu na revista Gatopardo, em 2012, que até a chegada da revolução cidadã, o Equador estava controlado por uma oligarquia servida por um pequeno grupo de meios com grandes audiências, aos que descreveu como “uma erva daninha que devia ser limpada”. E lembrou que disse a Correa que “a erva daninha está sempre ali, e sempre vai estar, e que por isso só tinham dois caminhos: dar espaço e negociar com eles, o que implicava deixar a erva daninha crescer, podando-a só de vez em quando. (…) O outro caminho era arrancar pela raiz”.

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Soraya Constante, do El País, em Quito