Por meio do documentário Encontro com Milton Santos, temos a chance de resgatar a importância de um ilustre brasileiro pouco valorizado pela mídia nacional. O filme, dirigido por Silvio Tendler e lançado em 2007, revela um pouco da trajetória deste grande geógrafo, praticamente ignorado em seu país. O documentário tem como eixo uma entrevista realizada em 2001, ano de sua morte. Crítico da globalização, livre de ligações partidárias e homem viajado, Milton Santos estava profundamente preocupado com a ‘fábrica de perversidade’, como ele chamava o processo de globalização.
Para embasar o filme, o diretor Silvio Tendler utiliza imagens de diferentes conflitos recentes em países da América do Sul, como Equador e Argentina, além do Brasil. Tais conflitos, para o geógrafo, são manifestações contra a centralidade do mercado e a lei do valor econômico. O centro da sociedade, nesse sentido, não é mais o ser humano. Dando voz aos que não têm oportunidade de expressão na grande mídia, o documentário apresenta um panorama de incertezas, domínio do norte em relação ao sul, mas ao mesmo tempo mantém um olhar de esperança, especialmente a partir dos movimentos civis organizados contra a exclusão.
Modelos e marcas globais
Abordar um tema como a globalização não é algo simples para um documentarista, pois trata-se de um assunto polêmico e multifacetado. A globalização é um processo histórico de convergência social, política, econômica e cultural que, ao mesmo tempo, integra e polariza. Foi com a Revolução Industrial, a urbanização e a produção em larga escala que os Estados foram se aproximando. Foi também com o modelo capitalista de produção – com a divisão social do trabalho marcada pelo salário e a alienação do trabalhador – que a globalização ganhou impulso. O fluxo de capitais circulando entre os Estados, com grande vigor, foi a mola propulsora da convergência.
O potencial integrador da globalização, segundo Milton Santos, é uma farsa, pois a globalização como sinal do capitalismo não visa ao desenvolvimento, mas acentua a polarização. O fluxo é do capital, e não dos trabalhadores, e por isso o geógrafo defende uma nova divisão internacional do trabalho. A prerrogativa globalizante é econômica e não social. A lei do valor impera; o mercado (econômico) domina todas as outras dimensões, influenciando especialmente a política, a cultura e o social.
Na dimensão política, o Estado-nação se vê questionado, pressionado a ceder às transnacionais e ao capital especulativo. É como se o Estado não pudesse lutar contra a grande onda. Na dimensão social, a diferença entre ricos e pobres se acentua, assim como a divisão entre norte e sul. No aspecto cultural, as particularidades nacionais vão sendo substituídas pelos modelos e marcas globais.
Constrangimento e violência
Na sociedade do descartável, não basta ser bom: é preciso ser o melhor e o mais atualizado. Com o avanço das tecnologias comunicacionais, o tempo e o espaço receberam uma nova configuração. A informação circula com rapidez. A comunicação integra a luta pelos direitos humanos e universais e ganha força, mas ao mesmo tempo as minorias políticas e economicamente débeis são empurradas para baixo, e não alavancadas para um ponto de igual desenvolvimento. O Estado-nação, crente no neoliberalismo dominante, se deixa governar pelas vozes globalizantes, o que acentua a polarização num cenário de aparente integração.
Esse é o panorama de Encontro com Milton Santos, a visão do lado de cá, do lado dos que são oprimidos e calados; ‘o lado dos que têm fome e também daqueles que não dormem com medo dos que têm fome’, na expressão de Josué de Castro, citada no filme.
O processo de contínua exclusão apresentado no documentário pode ser sentido e expresso como constrangimento. Como comunicadores sociais, não podemos aceitar, por exemplo, a situação cotidiana das crianças pedintes nas sinaleiras. Não conseguimos mais olhar nos olhos dessas crianças, encará-las como crianças que são. Esse é o constrangimento, a violência da qual somos vítimas e também violadores.
Reflexão e vôos mais altos
Ao não encarar mais a criança como criança, cometemos uma violência, profanando valores em que acreditamos, como a convivência harmoniosa e educadora entre adultos e crianças. Não reconhecemos mais como pessoa a criatura que está diante dos nossos automóveis. Não queremos tomar conhecimento da sua existência; desviamos o olhar; encerramos os ouvidos. Por vezes, a vergonha é tamanha que nos atrevemos a abrir cinco centímetros de vidro e dar uma moeda.
O medo, como profetizou Josué de Castro, é de que um dia os marginalizados se revoltem não contra os seus malfeitores, mas contra seus benfeitores. A esmola pode ser apenas um mecanismo de defesa e proteção contra um mal maior. Mas poderá haver um mal ainda maior do que não ter coragem de olhar para uma criança, ignorá-la? Quando a criança representa uma ameaça,e não a possibilidade de transformação da vida, então talvez o mal maior já tenha ocorrido: a perda da esperança na vida.
Como comunicadores, não podemos aceitar esse destino e não dar voz aos que sofrem. Precisamos confiar num diálogo possível, passar do constrangimento à ação positiva, otimista; acreditar que as virtudes humanas são muito maiores que suas mazelas. Contudo, não basta dar esmola através de uma fenda no vidro do carro, mas verdadeiramente estender não uma, mas as duas mãos ao encontro daquela criança que nos pede mais entusiasmo, afeto, solidariedade e confiança no ser humano. Jornalistas, publicitários e tantos outros profissionais da comunicação podem, além de estender as mãos, abrir um canal direto com a sociedade por meio da comunicação.
No contexto social em que vivemos, uma comunicação que verdadeiramente deseje ser humanizadora precisa ter essa confiança no ser humano; precisa valorizar um documentário como Encontro com Milton Santos. A exclusão cultural e social começa nos próprios meios de comunicação quando estes se tornam um reprodutor, inclusive do processo globalizante. Um comunicador atento e consciente deve ter cuidado com as armadilhas do tempo e, se não pode tomar decisões em benefício de todos, pode encorajar a reflexão e vôos mais altos dos seus públicos.
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Jornalista, doutor em Comunicação Social, Porto Alegre, RS