O fazer jornalístico é atravessado por uma série de vetores sociais e um deles é a força do dinheiro. Jornais, redes de televisão, emissoras de rádio e portais de informação são empresas e, como tal, estão interessados também em lucros. Em oposição à lógica mercadológica, o Código de Ética dos jornalistas brasileiros afirma, em seu primeiro artigo, que “o acesso à informação pública é um direito inerente à condição de vida em sociedade, que não pode ser impedido por nenhum tipo de interesse”.
Mas nós somos, cotidianamente, impedidos de ter acesso a determinadas informações públicas por causa dos interesses financeiros das empresas jornalísticas. Não é preciso formação acadêmica ou militância política para notar que essa ou aquela emissora apresenta de forma mais clara e atrativa as propostas de determinado candidato. Diante de casos em que a própria empresa jornalística seja protagonista, torna-se ainda mais claro a autocensura e supressão de determinadas nuances do episódio. Vide o caso Monica Gomide/Pimenta Neves, em que o jornal Estado de S.Paulo, empregador do casal, se absteve completamente de qualquer responsabilidade sobre o assassinato cometido por Neves, chefe e ex-namorado da vítima.
Para além dos enviesamentos das informações, o que é ou não noticiado tem orientações muitas vezes questionáveis. Na universidade nos é ensinado que uma das figuras que fazem parte de uma redação é o pauteiro. Este seria o sujeito responsável por decidir, entre uma vastidão de dados, quais são de fato notícia. Aprendemos que tal cargo exige um profissional experiente e perspicaz, que trabalha sempre atento ao público-alvo do veículo e de acordo com os interesses editoriais da publicação.
Graves infrações
A primeira questão a se problematizar é que os pauteiros não são os únicos a decidirem. Até os focas sabem que algumas matérias devem ser tratadas de maneira diferenciada. Apelidadas de “rec”, elas foram especialmente “recomendadas” pelo alto escalão da redação. Os editores também influenciam diretamente sobre a pertinência ou não de determinado conteúdo. E mesmo com uma pauta completa, o jornalista decide, por meio da escolha da fonte, das falas ilustrativas, dos personagens, qual vai ser exatamente a angulação da matéria.
O processo de produção de notícias está integrado em uma rotina industrial e, dessa forma, critérios de noticiabilidade atravessam diferentes interesses. O setor de marketing almeja que os anunciantes do jornal ultrapassem os quadrados a eles destinados e sejam boas fontes de notícias. Os editores setoriais querem que suas editorias sejam capa e tenham mais destaque. Os repórteres reconhecem que, para alcançarem boa reputação ou mobilidade profissional, precisam estar em sintonia com política da organização. Mas o grande problema é que, no fim das contas, a balança mais importante para todas esses interesses são as vendas, a audiência e, com esse fiel, manter valores e atitudes éticos e juridicamente legais torna-se um desafio.
Novidade, proximidade geográfica, proeminência, raridade, amplitude, clareza ou falta de ambiguidade, relevância, conformidade, imprevisão, continuidade, referência a pessoas e nações de elite, atualidade, injustiça, catástrofe, frequência são exemplos de critérios de noticiabilidade utilizados por diferentes veículos de comunicação. Importante notar que todos os critérios possibilitam notícias de interesse público, mas os temas que são exaustivamente repetidos comumente se restringem aos que são de interesse do público. Essa inversão de valores expressa por uma simples preposição é responsável por graves infrações às legislações vigentes, principalmente ao Código de Ética dos jornalistas, mas não apenas.
Estética impessoal e hipócrita
Interesse público é o tipo de conteúdo pertinente à vida em sociedade e apresentá-lo às pessoas é condição sine qua non para o exercício do jornalismo. Para que isso seja garantido, a Constituição Brasileira orienta, no artigo 220 do Capítulo V, Da Comunicação Social: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
Já a utilização maliciosa da expressão “interesse do público” justifica a publicação de conteúdos em total desacordo com valores éticos, mas estreitamente relacionados com o senso comum e com simplificações preconceituosas. Veículos e programas popularescos, ditos jornalísticos, exploram cada dia mais esse nicho por meio da espetacularização, dos julgamentos desmedidos e irresponsáveis. Eles são interrompidos apenas por propagandas que tem “o jornalista” como garoto propaganda. Nesse contexto, a notícia, que já foi teorizada como um produto cultural, fruto de uma construção social, torna-se um produto à venda, com compromissos ligados aos lucros.
De acordo com o Artigo 14, do já referido código de ética, o jornalista deve “ouvir sempre, antes da divulgação dos fatos, todas as pessoas objeto de acusações não comprovadas, feitas por terceiros e não suficientemente demonstradas ou verificadas.” Ao contrário do prega a carta, casos com o da Escola Base exemplificam de modo contundente como, além de não ouvir todas as pessoas objeto de acusações, a mídia faz as vezes de juiz: julga e condena alguma uma das partes.
Nessas situações a estética impessoal dos textos funciona de maneira hipócrita. Os fatos são apresentados na terceira pessoa, como se não houvesse uma mediação humana entre os acontecimentos em si e os leitores. Mas todas as informações são tendenciosas, todas as fontes são comprometidas com apenas um dos lados da história, todos os personagens servem apenas para reforçar o ponto de vista defendido no texto.
A regulação dos meios de comunicação
A maneira como as notícias são apresentadas, o lead, a ausência da primeira pessoa, o texto direto e frio colaboram com a rotina de produção jornalística na qual o mesmo texto, matéria radiofônica ou televisiva passa por várias mãos. Em diferentes medidas, em todas as plataformas noticiosas, o mesmo conteúdo é construído, tratado e lapidado por várias pessoas em diferentes cargos de responsabilidade. Assim como nas indústrias, o trabalho é dividido e o produto final dessa lógica, muitas vezes, é um texto frankenstein, ausente de autoria e também de responsabilidades.
Como fazer valer um código de ética que versa principalmente sobre a atuação de sujeitos jornalistas em um ambiente desses? Como uma orientação feita por uma organização ligada aos sindicatos pode legislar de maneira incisiva? As penas máximas do código são a exclusão do quadro social, para os sindicalizados, e o impedimento definitivo de ingresso no quadro social, para os não sindicalizados. Em alguns casos, a atuação da mídia é criminosa ao criar falsos flagrantes, cometer injúrias e difamações que nem mesmo a justiça comum atua sobre.
No entanto, mesmo se as punições fossem mais vigorosas, uma prática mais ética não estaria garantida. Não são os compromissos editoriais, tampouco a impossibilidade de imparcialidade que forjam uma atuação descompromissada com valores de bem. O modelo capitalista dita as regras dos negócios e não poupa as notícias de também terem valor mercadológico. A ferocidade desse sistema, essa sim, é responsável por transgressões vergonhosas da correta atuação jornalística. Não cabe a discussão sobre imparcialidade, sendo ela uma utopia a ser alcançada, mas a objetividade no tratamento dos assuntos é uma arma em prol de um jornalismo mais ético.
O que resta de esperança é a formação humana dos sujeitos envolvidos na rotina de produção jornalística. Como a maior parte deles são jornalistas, vale creditar a formação acadêmica uma parcela de responsabilidade sobre a atuação de repórteres, editores, pauteiros, redatores etc. As discussões sobre tais questões não pode, e deve ser irrestrita a uma disciplina apenas. O debate deve estar presente em cursos como o de “Teoria do Jornalismo”. Os critérios de noticiabilidade devem ser criticados quando estritamente comerciais. A teoria do newsmaking deve ser analisada a fundo e os jornalistas em formação devem perceber o quanto a prática pessoal é essencial para o bom jornalismo.
Também é essencial que aconteça a regulamentação dos meios de comunicação. Que a publicidade oficial seja corretamente distribuída entre veículos de grande e pequeno porte. Que os merchandisings sejam corretamente regulamentados de modo a não ultrapassar a quantidade devida de peças comerciais durante a programação de uma emissora. E que aconteçam punições severas sobre as empresas midiáticas em casos de abusos.
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Pollyana Faria Lopes é estudante de Jornalismo