Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Brasil do eu acredito

“Eu acredito, eu acredito.” Uma pequena parte da torcida brasileira ainda repetia o bordão depois de a seleção brasileira já ter levado uma goleada dos alemães no Mineirão. Era uma pequena grande cena. A realidade se impunha como o inacreditável, as bolas iam estourando na rede brasileira como ficção, quem não tinha deixado o estádio olhava para o campo tomado pela anestesia que assinala a tragédia. A inversão da expectativa é tão avassaladora que passa a ser interpretada como irrealidade, num estado delirante, em que qualquer gesto parece destinado ao nada. A goleada era da Alemanha no Brasil, mas era ainda mais profundo do que isso: era realidade 7×1 pensamento mágico. Um? Não. Zero.

Essa foi a seleção do pensamento mágico. E, nesse aspecto, não podia ser mais brasileira nesta Copa de 2014. Não o pensamento mágico como fonte de explosão criativa, mas como um produto de consumo. Vende-se que o espetáculo é a verdade profunda sobre o Brasil e o seu futebol. Confunde-se marketing publicitário com realidade. Os jogadores da seleção comportam-se como astros. Não mais astros de rock, mas astros de um show religioso. Confinados, assistem a palestras de “motivação”, são treinados no pensamento de autoajuda mais do que no campo, com a bola no pé.

Age-se como se houvesse uma predestinação. Se você acreditar muito, você consegue. Se você rezar muito, acontece. A arrogância enorme de achar que “deus” é torcedor do seu time porque você é o mais merecedor expressa nas cenas de joelhos dentro do campo, os dedos apontando para o céu, a oração em transe nos momentos-limite.

O futebol brasileiro hoje

Só que acreditar não foi o suficiente para fazer acontecer. A realidade deu de goleada. Diante da força avassaladora da verdade em alemão, os torcedores brasileiros reagiram como se tivessem sido traídos. Apresentadores de TV que desempenharam o papel de, em vez de fazer uma narração crítica, serem o mestre cerimônias de um espetáculo no qual a realidade era matéria ordinária, passaram a sangrar os “vilões” com o mesmo empenho com que antes os tinham transformado em “heróis”. É fácil perceber por que o espetáculo, com tanto dinheiro envolvido, precisa continuar o mais rapidamente possível. No mundo de negócios a lealdade não importa, os puxa-sacos que antes só faltavam lustrar a careca de Felipão com a língua, agora mostram caninos afiados, ávidos por sangue.

Não há inocentes nessa trágica história de futebol. Nem mesmo os torcedores. O que se convencionou chamar de povo brasileiro embarcou alegremente na lógica do espetáculo. Era visível nos estádios, onde proporcionalmente havia muito mais negros em campo do que nas arquibancadas, que a preocupação com a câmera para muitos era maior do que com o jogo que se jogava no chão. Nas entrevistas com torcedores fantasiados de verde-amarelo, a maioria deixava claro que se produzia para virar imagem na TV. Na entrada da Granja Comary, eram mais numerosos os que tentavam vender alguma coisa, aproveitando a presença das câmeras – em geral a si mesmos. A torcida era mais um produto. E um produto sem constrangimento de apresentar-se como produto.

Todos cumpriram o seu papel, então como não deu certo? Como parecem descobrir agora o que alguns têm dito, a um alto custo pessoal e profissional, que o futebol brasileiro não é mais o futebol brasileiro? Ou, o mais difícil de ouvir, que este é o futebol brasileiro hoje.

Depois dos sete gols, Neymar foi jogar pôquer

Algumas cenas da “reação” dizem muito:

1) A entrevista coletiva de Felipão, acompanhado da comissão técnica, nesta quarta-feira (9/7), na Granja Comary. A cena era bastante patética. Felipão levou várias planilhas para mostrar que fez tudo certo. “O trabalho não foi de todo ruim, tivemos uma derrota ruim.” Ele continuava achando – ou fingindo achar – que a “realidade” das planilhas era mais “real” do que o que todos viram no Mineirão. Carlos Alberto Parreira chegou a fazer uma afirmação surreal: “Todos foram perfeitos, nenhum deslize. O resultado é que impactou.”

2) O pedido de desculpas de David Luiz depois do jogo. “Eu só queria dar alegria ao meu povo, a minha gente que sofre tanto inúmeras coisas (…). Eu só queria ver o meu povo sorrir. Todos sabem o quanto era mais importante pra mim ver o Brasil inteiro feliz pelo menos por causa do futebol.(…) Um dia vou alegrar esse povo de alguma forma.” É um discurso emocionado, em lágrimas, mas também é um discurso de político populista. Expressa sincera emoção, mas também enorme onipotência.

3) Neymar, o menino de chuteiras douradas da seleção e do mercado publicitário. Quando a realidade interfere, na forma do joelho do colombiano Zúñiga, foi preciso rapidamente improvisar para continuar mantendo a propriedade da narrativa. Neymar disse outra frase, que também pertence a essa geração: “Tenho certeza que os meus companheiros vão fazer de tudo para que eu possa realizar o meu sonho, que é ser campeão.” O sonho dele. De imediato criaram-se campanhas de apoio, máscaras com o rosto do jogador, usando e potencializando a comoção nacional. Era preciso manter o jogo, não o da bola, mas o do mercado, em campo: “Somos todos Neymar.” Na vida real, como mostrou Juca Kfouri, depois dos sete gols Neymar foi jogar pôquer com os amigos.

Na vida real, o “apagão” dura anos

4) A imagem de um menino inconsolável, aos gritos: “Quero vencer!” Mantém-se a narrativa do “trauma”, que atravessou a campanha brasileira nessa Copa. Primeiro, eram os jogadores em permanente estado de “trauma”, fosse por quase perder do Chile, fosse por perder Neymar, agora por perder de goleada. É a marca dessa geração, treinada para acreditar que o pensamento mágico de poder tudo é a realidade. Tudo o que é da vida não é da vida, mas “trauma”. A vida “traumatiza”. Acaba o jogo da Alemanha e são as crianças brasileiras as "traumatizadas". Como se uma derrota, mesmo acachapante, não fizesse parte de qualquer existência humana. Completa-se a transmutação: uma seleção de traumatizados, uma torcida de traumatizados. E, mais uma vez, explora-se o choro a exaustão, agora das crianças. Não é trauma na seleção, não é trauma na torcida. Trauma é de outra ordem.

O espetáculo continua, parece que pouco se aprendeu com a goleada da realidade. Neymar desembarcou nesta quinta-feira (10), na Granja Comary, “para dar apoio” aos companheiros, aos “caras”. O único que não estará em campo em Brasília, na partida pelo terceiro lugar, foi o escolhido pela CBF para dar coletiva à imprensa. Torna-se explícito qual é o jogo que realmente importa. O drama real é insuficiente, o espetáculo precisa seguir. É vetado se retirar do palco. O herói alquebrado será explorado até o fim. Todos usando todos.

O que aconteceu não foi um “apagão” de seis minutos no jogo contra a Alemanha. Seria fácil se fossem só seis minutos. Na vida real, o “apagão” dura anos, abarca o país inteiro e continuará como espetáculo depois da Copa, se o bordão “eu acredito” não mudar para “eu duvido”.

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Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista