Sem que se aventem soluções autoritárias e interventoras, é preciso que a lição da Copa contribua para a restituição do sentido público da seleção. A consternação pelo fracasso da seleção brasileira na Copa do Mundo de 2014 transforma-se, à medida que os dias passam, em tentativa racional de explicação. À exceção dos dirigentes da CBF, quase todos os protagonistas – da comissão técnica aos jogadores – já foram instados a se pronunciar.
Há, em geral, dois tipos de justificativa para resultados negativos em Copas do Mundo: o conjuntural e o estrutural. Quanto ao primeiro, pouco há a dizer, posto que é constitutivo do élan e do viço que tornam uma partida tão atraente. A ausência de controle sobre corações e mentes dos atletas compõe o coeficiente emocional que dá o cunho de dramaticidade de que tanto gostava Nelson Rodrigues. Essa margem de imprevisibilidade fazia o sociólogo francês Roger Caillois classificar em quatro as propriedades intrínsecas do esporte: a vertigem (ilinx), o simulacro (mimicry), o combate (agôn) e a sorte (alea).
Assim, a mesma Hungria do major de cavalaria Ferenc Puskás que goleou a Alemanha por 8 a 3 na fase classificatória do Mundial da Suíça em 1954 foi batida na final pelos alemães de virada por 3 a 2, em partida conhecida como “milagre de Berna”. Se a narrativa de cada Copa faz do assombro e da surpresa a sua atratividade, as justificativas estruturais para a derrota, eminentemente políticas, abduzem o que se passa dentro das quatro linhas e apresentam também o seu protagonismo nas 20 edições do Mundial. Afora as Copas de 1938 e de 1982, todas as demais disputas perdidas pela seleção brasileira implicaram em reflexões críticas extracampo sobre a estrutura organizativa e gerencial do futebol nacional, de 1930 a 2014.
Contratos escusos e ausência de alternância
Nesse sentido, a própria criação de uma Confederação Brasileira de Desportos, em 1914, foi uma necessidade decorrente da invenção de torneios internacionais, como o Campeonato Sul-Americano. Ainda que surja como entidade privada, a CBD tem sua gestação intimamente ligada à esfera pública e governamental, pois foi concebida como missão diplomática no interior do Ministério das Relações Exteriores.
Na década de 1940, quando do interregno das Copas do Mundo em razão da Segunda Guerra Mundial, o Estado Novo varguista urdiu o CND (Conselho Nacional de Desportos), entidade estatal centralizadora responsável pela unificação e pelo controle das ligas no país. O CND teve toda a sua legislação esportiva redigida pelo jurista João Lyra Filho e foi idealizada no interior no Ministério da Educação e da Saúde.
Dado o seu caráter autoritário, o CND sucumbiu com o tempo, em particular após o final do regime militar, sendo extinto nos anos 1990, em paralelo à criação do Ministério Extraordinário do Esporte, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A CBD, por seu turno, desmembrou-se em Confederação Brasileira de Futebol e nas várias modalidades esportivas autônomas, a partir dos anos 1970. Desde fins da década de 1980, no entanto, a CBF vem se distanciando de suas responsabilidades públicas morais, em meio a contratos escusos, à ausência de alternância interna de poder e ao esgarçamento de vínculo entre seleção e torcida, com um calendário de partidas voltadas ao exterior.
Lição deve ser estrutural
A derrota ainda dói. A reflexão e a ação enérgica que ela encerra, no entanto, devem servir para ir além das justificativas conjunturais, ou mesmo das explicações de fundo atávico. Estas se aferram a uma suposta psique coletiva débil, incapaz de lidar com os momentos decisivos ante os selecionados europeus, presumidamente frios e superiores, arrazoados explicativos tão ao gosto de determinadas elites dirigentes esportivas brasileiras.
Sem que se aventem soluções autoritárias e interventoras fáceis, é preciso que a lição da Copa seja estrutural e contribua para a restituição do sentido público da seleção. Uma nova relação entre governo e entidades tem de ser gestada, não só para reinventar a paixão nacional como, sobretudo, para recuperar os brios com o futebol nesse país.
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Bernardo Buarque de Hollanda é professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas