Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Para além da guerra e do circo

Já se disse que há uma coisa ruim nas vitórias: elas não são definitivas. Há, também, uma coisa boa nas derrotas: é que elas não são definitivas. Dito de outra forma, para além dos resultados colhidos agora, há um processo, uma história, onde teremos novas oportunidades de vencer e perder; novas chances para a glória e a miséria. O que importa, então, é o caminho que trilhamos. No caso do futebol brasileiro, devemos nos perguntar sobre o caminho percorrido, sobre os conceitos que temos firmado. Analisar uma partida de futebol, ainda que ela sintetize uma tragédia, não nos permitirá identificar novos caminhos. Para isso, é preciso pensar mais ampla e radicalmente sobre o futebol brasileiro. A goleada vexatória diante da Alemanha talvez seja o atestado de óbito de uma forma de se fazer e de se conceber futebol. Se for isso, a derrota terá sido muito importante para o Brasil.

Nosso país possui uma estrutura autoritária, ineficiente e corrupta no futebol. Embora todos saibam disso, poucos parecem dispostos a enfrentar o problema. É claro que também temos dirigentes sérios e competentes, mas eles parecem ser a minoria. A regra é o despreparo, a incultura e a falcatrua. Pela desorganização reinante, nossos clubes sempre devem fortunas e não temos um calendário que promova o futebol, como bem tem insistido o movimento “Bom Senso”, a mais promissora iniciativa do futebol brasileiro em décadas.

Nos falta um conceito moderno de futebol que ultrapasse polarizações ingênuas do tipo “futebol arte versus futebol força”, “times ofensivos versus defensivos”. Sobretudo, é preciso que a ideia do “craque”, aquele jogador tido como “diferenciado”, não seja a referência mais importante para a crônica esportiva e para as torcidas. Fomos acostumados com a noção de que nossos jogadores são melhores do que os outros, esquecendo que bons times não são o resultado da soma de bons jogadores, mas do modo de jogar, da forma como os espaços são ocupados, da velocidade das jogadas, do bloqueio das ações do adversário e dos movimentos táticos adequados.

A nova escola alemã

O futebol é o mais coletivo dos esportes coletivos. Nele, cada movimento realizado por um jogador repercute imediatamente sobre o conjunto, mas só o que nossa cultura futebolística nos permite ver são os “craques”, o que projeta um individualismo que corrói nossas chances contra equipes bem organizadas. Nesta Copa, o Brasil jogou mal todos os jogos. Nossos jogadores foram risíveis na exata medida em que estiveram todo o tempo isolados, sem um time. A cada jogada se espera o milagre, o ato criativo genial capaz de demolir a defesa inimiga. Talvez por isso tenhamos tanta religiosidade no futebol. O problema é que milagres não existem. Nossos jogadores fazem o sinal da cruz e agradecem aos céus cada gol marcado, como se a proteção que precisam não fosse aquela que seus companheiros podem lhe dar e como se a vitória não fosse sempre o resultado do empenho e da técnica de todos. O individualismo no campo é uma espécie de sobrevivência do pensamento mágico. Neymar é, neste particular, nosso feiticeiro preferido. Jogamos a bola nele e dizemos: vá e faça.

O futebol no Brasil vive, desde a experiência da seleção de 1986, em declínio técnico. Montamos dois times campeões do mundo desde então, o de 1994 e o de 2002, mas nenhum deles jogou de forma inovadora. Naquelas vezes, também não enfrentamos adversários especialmente fortes. Desde então, tivemos evoluções importantes no futebol em outros países. O continente africano construiu um padrão e passou a formar seleções fortes; em vários países asiáticos, o futebol se transformou em uma paixão e os clubes investem muitos recursos na formação de equipes competitivas e em suas divisões de base. Pode-se dizer o mesmo do leste europeu e da Rússia. Nos EUA e Canadá, historicamente refratários ao futebol, se observa uma mudança importante na qualidade dos times e já se pode falar de um mercado significativo; na América Central, por seu turno, surgem bons jogadores e, pela primeira vez, uma seleção – a Costa Rica – chegou às quartas de final em um Mundial. Na América Latina, a evolução do futebol no Chile e na Colômbia, como se viu na Copa, mas também em outros países no continente, confirma a tendência de aperfeiçoamento. Nos países da Europa Ocidental, tivemos o “caso Barcelona”, com a emergência de um futebol vencedor, orientado por um conceito revolucionário e apurada técnica e, mais recentemente, a afirmação da nova escola alemã, marcada pela objetividade e pela afirmação de um futebol que há muito já não cabe nos estereótipos de “força” ou “imposição física”. Pelo contrário, os alemães jogam hoje aquele que talvez seja o futebol mais técnico entre todos.

Uma mídia patrioteira e rasa

Assim como ocorre agora, depois da goleada alemã, muitos imaginaram que tudo poderia ser resumido a uma “pane” quando o Barcelona massacrou o time do Santos na final do mundial interclubes, com Neymar em campo. Definitivamente, não se trata disso. Aquela goleada foi um aviso que não reconhecemos. Nosso melhor time entrou em uma roda de bobo com o adversário trocando passes até a pequena área e empilhando gols. Estava escrito.

A explicação dos 7 a 1 não começa, portanto, com Felipão, nem se resume à escalação infeliz. O técnico da seleção brasileira e sua comissão são apenas a tradução autossuficiente e orgulhosa do futebol medíocre que praticamos e cujos conceitos oscilam entre a guerra e o circo. De um lado, o discurso em favor da “raça”, da disposição, da garra, do vamo-que-vamo, da vitória a qualquer custo, ainda que de sola, de cotovelo ou com a mão. Esta é a parte “guerra”. Do outro, a ideia de que o futebol é a “alegria nas pernas”, a molecagem, o improviso, acompanhado pela performance do ator, pela simulação, pelo mergulho ao menor contato, pela reclamação constante frente à autoridade encarregada de fazer cumprir a lei. É a parte “circo”, que se completa no malabarismo inútil, na jogada enfeitada, na pose daqueles que almejam o espaço dos “diferenciados”, na atenção pelo visual – do brinco ao corte de cabelo – e nos intensos compromissos comerciais. Por trás de tudo isso, uma mídia que segue hegemonicamente patrioteira e rasa e empresários de todo o tipo agenciando negócios os mais criativos. É este cenário que precisa ser alterado.

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Marcos Rolim é jornalista e sociólogo