Tinha me prometido não escrever sobre futebol, campo de paixões e dos dribles de improviso. Sobre ele, Roberto da Matta e José Miguel Wisnick já formalizaram o que deve ser lido. A mais, com a derrota e o fracasso, é comum a maioria das pessoas ter as melhores teorias, as soluções milagrosas não adotadas e os choros de viúva, efeitos que não aparecem no caso de a taça ser erguida. Também não fazia sentido refletir sobre o peso das marcas, das cifras e dos negócios que entram em campo a cada partida, tão bem jocosamente poetizados por Luiza Romão (ver aqui). Não cabe aqui a lágrima dolorida (embora ela exista) de quem aposenta uma esperança depois do placar absurdo e do time inteiro em uma mudez perplexa, a lágrima de muitos, cujo país recebe a nomeação de “do futebol”. Muitos que saíram do estádio e das ruas sem quebra-quebra, caminharam de cabeça baixa, guardando a tristeza no bolso, devagarinho. Mais quatro anos de espera, outra lágrima. De muitos, e a minha.
Mas este texto pretende analisar o funcionamento discursivo de certa parte da mídia brasileira, a mídia pancadaria que fez falar, no alto de seu picadeiro de horror, um espetáculo carregado de xingamentos, acusações, violências e brutalidades, cujos sentidos distam do mínimo razoável. O paradigma da neutralidade já é balela há tempos, todos sabemos; no entanto, é comum os sujeitos na posição de jornalista manterem um semblante de que ela exista e que ela sustente aquilo que se diz. O estilo bombástico, desrespeitoso e truculento que constitui o dizer de alguns comenta-dores cria uma estranha semelhança entre situações de violência explícita e certo aproveitamento da audiência que o terror pode gerar. Tal movimento põe em curso o grito e o autoritarismo, a falta de lucidez e as ameaças, o assédio e a dificuldade de uma articulação argumentativa, insuflando o peito insano para a conquista de um ponto a mais do ibope na competição cega pela audiência. “O nosso Twitter tá bombando.” Algumas interrogações: por que será que um apresentador de televisão precisa esbravejar e vociferar com ódio tanto e tanto? E qual a necessidade de olhar o celular o tempo todo quando se está no ar? Para que recorrer à rede digital sendo que a televisão é o dispositivo que faz varredura da circulação de informação no país inteiro? Não seria exagerada tal suposta necessidade de aprovação? Estaria aí um movimento frágil como se os internautas assegurassem a legitimação dos ditos televisivos?
O respaldo de uma mídia sobre a outra em uma costura do vivo e do online: eis o que parece ser o mais moderno dos mundos. Eis o que parece dar todas as garantias de audiência e sucesso e, assim, de manutenção do que ali se apresenta. O que está na tela da televisão reforçaria o que virtualmente explode na tela do celular, apontaria a necessidade de entrecruzar as mídias para se autoproclamar, produziria uma convergência de consensos com o intuito de apontar a rapidez dos acessos e as curtições dos sucessos. As ilusões capturam o sujeito, disso já sabemos, a teoria nos alerta; e as ilusões o fazem de modo compacto, ao menos que o sujeito se pergunte e faça furos no que o imaginário faz parecer evidente.
O ser humano e a dor
Não dá para saber se o comentador, cujos efeitos de violência ganham forma em cada uma de suas indelicadezas, indaga a si mesmo sobre seu próprio dizer. Certamente não porque o repete e, para além das palavras, há uma densa mímica que as acompanha com a mão batendo no peito, no braço… Se puder, na câmera. O dedo em riste e o rosto com franzidos que também indiciam esse modo de narrar. Patético como esse mundo se edifica! E como continua no ar! Escrevem-se marcas – verbais ou não, de violência ou de “macheza” – que são permanentemente condenadas quando apresentadas entre jogadores, torcedores ou anônimos como nós. E devem mesmo ser contidas, porque algo da violência no humano precisa de freio para que a cultura seja entre nós possibilidade de laço.
Soltar o verbo, nesses termos, corresponde a bater duro, rosnar desrespeitos e passar por cima de todos e de qualquer um, até mesmo quando se está diante de um colega de emissora. Sinaliza, assim, um campo de confrontos dirigidos pela exasperação, ameaça e força bruta. Porque a palavra também se presta a isso… E – triste, talvez mais triste que a derrota do nosso time em casa – na maioria das vezes, a plateia bate palma e pede bis com o sorriso cheio de sangue. Bis e bis porque o pior não é dito pela ausência e falha constitutivas do humano, tampouco o pior reclama algum movimento de solidariedade… Nessa performance espetacular, o pior é matéria a violentar. Pior para as coberturas esportivas, certamente.
Não só o futebol mudou, nem só os placares despencaram para a camisa amarela, alguns jornalistas e comentadores também se apresentam no vermelho. Talvez por isso, ontem deu uma saudade imensa da elegância inteligente do Luciano do Valle, seu riso gentil e a delicadeza com que dizia as críticas mais duras e necessárias. Um vazio dentre tantos… Fernando Fernandes respondeu de modo especial ao pior, ponderou uma borda sensata para o inexplicável e fez essa saudade e esse vazio diminuírem um pouco, disse que por trás das câmeras e dos uniformes tem o ser humano e tem a dor. Ainda bem que, nos entremeios dos dizeres dominantes, existe sempre a possibilidade do deslizamento dos sentidos e da ruptura. Fernandinho o disse, assim seja.
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Lucília Maria Abrahão e Sousa é professora e livre docente