Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Maduro e a compra de meios críticos

Um dos principais jornais da oposição da Venezuela foi vendido numa operação envolvida em mistério, alimentando crescentes temores no país quanto à independência do jornalismo. O El Universal, cuja venda foi anunciada este mês, é o terceiro grande meio a trocar de mãos desde a morte, em março do ano passado, do presidente socialista Hugo Chávez e a eleição do sucessor que ele mesmo escolhera, Nicolás Maduro.

A Venezuela é um país profundamente dividido, onde a propaganda e a mídia há muito constituem o campo de batalha entre um poderoso Estado de esquerda e uma oposição concentrada na classe média e na elite. O governo comanda pelo menos 10 estações de televisão e mais de 100 estações de rádio. Os críticos afirmam que a imprensa independente se sente cada vez mais pressionada a calar ou a adotar a autocensura.

Os outros dois veículos de comunicação vendidos são a Globovisión, uma emissora que promovia agressivamente o programa político da oposição, e a Cadena Capriles, cadeia de jornais que publica o Últimas Noticias, um dos diários de maior circulação no país. Com os novos proprietários, o noticiário veiculado por ambos tornou-se mais favorável ao governo. Na Venezuela, muitos temem que o mesmo destino aguarde El Universal, um jornal fundado há 105 anos, sempre crítico do governo em seus editoriais e reportagens.

Numa mensagem ousada em seu blog no site do jornal, o diretor responsável de El Universal, Elides Rojas, desafiou os novos proprietários a manter o padrão jornalístico. “Fatos como os ocorridos na Globovisión ou na Cadena Capriles não serão aceitos em nenhuma hipótese”, escreveu. Rojas disse que está disposto a trabalhar com os novos proprietários e a dar-lhes o benefício da dúvida, mas teme que a compra faça parte de um esquema mais amplo para permitir que o governo aumente sua influência sobre a mídia.

Na base dessas suspeitas está o mistério em torno do novo proprietário, identificado na semana passada como uma pequena companhia espanhola, até então desconhecida na Venezuela, chamada Epalisticia. “Acho que por trás desse negócio existem testas de ferro ligados a pessoas amigas do governo”, disse Rojas.

Censura negada

Dados do governo espanhol mostram que a Epalisticia foi registrada em Madri em agosto e apresentou documentos segundo os quais ela atuava no ramo imobiliário e da construção. Em outubro, ela apresentou novos documentos, declarando que seu objetivo era “investir e administrar veículos de comunicação”, com foco na América Latina. O site da companhia foi criado há poucas semanas por um programador de Miami e funciona parcialmente, com muitos links soltos. Segundo o site, a companhia tem “uma reserva de capital de mais de US$ 1 bilhão”, mas não há detalhes sobre investimentos.

Mensagens enviadas para o endereço de e-mail informado no site receberam uma resposta automática de que não puderam ser remetidas. Os novos proprietários nomearam como presidente do jornal um empresário venezuelano, Jesús Abreu, irmão de José Antonio Abreu, fundador de um renomado programa de ensino de música clássica e integração social para jovens pobres chamado El Sistema. Numa entrevista, Abreu afirmou: “Não tenho motivos para supor que tenha havido uma negociação entre os novos investidores e o governo”. Indagado sobre as preocupações a respeito da direção do jornal, respondeu: “Não seremos críticos apenas do governo, mas de tudo o que tiver de ser criticado”.

A venda de El Universal parece obedecer a uma metodologia semelhante à das vendas recentes de outros jornais, nas quais houve suspeitas de que aliados do governo estivessem por trás das operações. As vendas provocaram preocupações em parte porque a Venezuela tem uma longa tradição de transações envolvendo testas de ferro, nas quais indivíduos ricos ou poderosos usam outras pessoas para ocultar os verdadeiros proprietários.

A venda da Globovisión foi concluída em abril de 2013, dias depois de Maduro vencer a eleição por 1,5 ponto porcentual e ser escolhido substituto de Chávez. A Globovisión funcionava como contrapeso a um grupo de emissoras de TV dirigidas pelo braço da propaganda do governo beneficiado por vultosas verbas. Ela oferecia espaço para políticos da oposição e simpatizantes se expressarem e nas campanhas presidenciais de abril de 2013 e de outubro do ano anterior (quando Chávez foi reeleito) transmitiu regularmente eventos do candidato da oposição Enrique Capriles. Depois da venda, a emissora parou a cobertura desses eventos e Capriles não apareceu mais. Vários repórteres e âncoras foram demitidos ou seus programas foram encerrados.

A Cadena Capriles (sem ligação com o político), que publicava o Últimas Noticias, foi vendida em outubro. O jornal era peculiar, pois tinha um editorial de tendência favorável ao governo – seu editor-chefe escreve regularmente uma coluna nesse sentido – enquanto seu material em geral era imparcial, e incluía muitos artigos que criticavam os programas do governo, funcionários públicos e consequências da política governamental.

Depois da venda, repórteres queixaram-se de que reportagens críticas ao governo deixaram de ser publicadas. Um fato que irritou os repórteres ocorreu em fevereiro, quando três pessoas foram assassinadas num dia de protestos em Caracas – as primeiras mortes em eventos que originaram uma série de manifestações. No dia seguinte, as mortes saíram com um título menor na primeira página, abaixo de uma manchete enorme que citava Maduro: “Estamos enfrentando um golpe”.

Os críticos da direção do jornal criaram uma conta de Twitter na qual acusam os novos proprietários de ter pressionado repórteres e editores a alterar a cobertura. Vários deles se demitiram e recentemente os repórteres do jornal iniciaram uma greve deixando de assinar as matérias, em protesto contra a direção.

O diretor responsável pelo Últimas Noticias, Eleazar Díaz Rangel, defendeu recentemente a atuação do governo sobre a liberdade de imprensa e a própria gestão do jornal, quando recebeu um prêmio de jornalismo entregue numa cerimônia pelo próprio Maduro. “Desde que Hugo Chávez se tornou presidente, a censura e outras formas de repressão da imprensa pararam”, afirmou Díaz Rangel. Ele negou que as notícias sejam censuradas. “Não há papel jornal suficiente para imprimir tudo o que chega ao jornal, portanto somos obrigados a escolher o material. Algumas pessoas chamam isso de censura”, afirmou.

Falta papel

Os críticos insistem no aumento da pressão. “O ecossistema da informação na Venezuela está atualmente sujeito a forte pressão política, o que afeta sua diversidade e pluralismo”, ressaltou Carlos Correa, diretor executivo de Public Space, organização sem fins lucrativos que trata da liberdade de imprensa. Correa salientou que a Globovisión foi vendida depois de ser obrigada a pagar repetidas e pesadas multas aplicadas por uma agência reguladora oficial. A principal emissora de TV favorável à oposição, RCTV, perdeu sua licença para operar em 2007. Durante os protestos deste ano, Maduro ordenou que um canal de notícias da Colômbia, o NTN24, fosse impedido de transmitir via cabo na Venezuela.

Os jornais também estão sujeitos a pressões porque o governo se recusa a permitir que eles tenham acesso aos dólares necessários para a importação de papel imprensa. El Universal e vários outros reduziram o número de páginas e já avisaram que poderão parar quando o papel acabar. Alguns diários regionais suspenderam temporariamente suas publicações.

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William Neuman é jornalista do New York Times