Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A nova esfera pública

Nunca é demais se socorrer da memória. Foi a ela que recorri quando, após ter lido o artigo “O Despotismo Democrático sem medo e sem Oriente”, de Marcelo Jasmin, lembrei de um artigo ou reportagem onde FHC manifestava sua preferência por Tocqueville, em detrimento de Marx. O aluno preferido de Florestan Fernandes e ex-participante do grupo de estudiosos do “Seminário Marx”, junto com Paul Singer, Francisco de Oliveira, Bento Prado Jr. e Roberto Schwarz (só para lembrar alguns que não se bandearam junto com ele para a direita, como José Arthur Giannotti, Francisco Weffort e outros), já tinha dados provas mais do que visíveis de sua nova ideologia ou de seu pragmatismo, se preferirem. De concreto, esta preferência não resultou em nada. Ao contrário, o seu mandato como presidente somente agravou o principal mal denunciado, que era a perda da anima cívica, que Montesquieu e Tocqueville consideravam fundamental para a república.

Ao atuar politicamente sobre o primado do consenso de Washington, o chamado neoliberalismo, FHC colocou a ultima pá de cal na esfera pública e seu principal eixo, o papel atuante da cidadania, que assim foi posta em posição secundária para permitir o advento da hegemonia do chamado Mercado. Disso resultou toda uma prática discursiva e conceitual demonizando o Estado, os sindicatos de trabalhadores, a política e os políticos. O Estado era um elefante lento e ineficiente. Os sindicatos, corporativos, e a política e os políticos, um bando de corruptos e desqualificados. É claro que neste contexto a virtude estava no outro lado – a classe empresarial e a empresa privada que desfilava garbosa e agora desfila na grande mídia, após a crise de 2008, de forma um pouco menos acintosa, por razões óbvias. Ao espírito dos súditos, principal alvo das críticas de Tocqueville por seu conformismo e fuga do papel de agente importante da cidadania, restava o passivo e acanhado papel de claque para os novos senhores agora finalmente entronizados sem intermediários, isto é, sem políticos como instrumentos de defesa de seus interesses.

Com o advento da internet, surgiu o inusitado: esta claque corrompida, ainda mais corrompida pela instauração do egoísmo como valor que é no final das contas o que vinga no modelo de darwinismo econômico e político neoliberal, começou a se sentir motivada naturalmente a expor seus pontos de vista, que refletem e reforçam o discurso de status quo onipresente na chamada grande mídia. Instaura- se assim um feedback onde os valores dos verdadeiramente poderosos, os chamados 1% mais ricos, são refletidos e reforçados por esta ressonância, este eco, da sua opinião.

Maioria ruidosa

Neste fenômeno midiático novo ocorre a passagem da maioria silenciosa para minoria ruidosa. Irrompe, portanto, na abandonada esfera pública, um personagem novo e de onde menos se espera: das fileiras dos conformistas e avessos a tudo que signifique risco à sua segurança e bem-estar privado. Existem controvérsias – se eles eclodiram como reação ao crescimento das forças progressistas e democráticas ou se surgiram na mídia social simultaneamente a estes últimos.

O importante é a retomada por vias tortas da esfera pública. Digo vias tortas porque, como não poderia ser diferente, as pessoas se manifestam, geralmente, nesta nova versão de esfera pública, que se constituiu a mídia social, sem a cartola e a sobrecasaca da razão e do decoro. Daí que o xingamento, a agressão chula, a ideia de que o que pensa diferente não é um adversário, e sim, um inimigo, é o que mais se percebe no geral.

Este novo cenário conturbado tanto pode evoluir para um modelo mais tolerante e civilizado como rumar para o sentido contrário. Só uma coisa é certa: a esfera pública adquiriu novamente importância e veio, para o bem ou para o mal, para ficar. Como resultado, a maioria nunca mais vai ser silenciosa.

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Jorge Alberto Benitz é engenheiro e consultor