Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fã de computador, saudoso da máquina de escrever

João Ubaldo Ribeiro sentia-se sempre desarmado diante de entrevistadores – caso não estivesse lançando alguma nova obra, acreditava não ter o que dizer. Na verdade, era uma defesa, pois, bastava uma provocação para o escritor baiano desfiar verdades absolutas, ditas com seu inconfundível tom de voz tonitruante, frases que saíam no embalo da melodia baiana.

Ele também era um adepto da tecnologia, especialmente a que envolvia seu processo de trabalho – costumava sempre atualizar os programas de seu computador. Ubaldo não resistia, porém, a um toque de nostalgia – enquanto escrevia, deixava acionado um programa que transformava o som de seu dedilhar de teclas no antigo barulho de máquina de escrever. Até a mudança de linha fazia lembrar a corrida do carro. “Isso me faz recordar do tempo em que trabalhava em jornal, quando cumpria horários rígidos – o que também me ajuda a não atrasar meus trabalhos”, contou ele ao Estado em 2008, durante entrevista realizada no escritório instalado em seu apartamento, no bairro carioca do Leblon.

Na verdade, ao longo de sua história, foram poucos os momentos em que Ubaldo tomou a iniciativa. E, mesmo assim, não eram situações tranquilas. Uma das mais retumbantes aconteceu em 2004, quando desistiu de participar da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Apesar de elogiar o evento, ele se considerou um mero coadjuvante. “Respeito todos os autores participantes e também a organização, mas, no material de divulgação da festa, chego a ficar fora até do ‘etc.’”, disse Ubaldo aos quatro ventos. “Não tenho vedetismo, mas não posso, depois de velho, participar como um coadjuvante.”

Quando parecia que figuraria em uma lista negra, o escritor foi novamente convidado em 2011, ganhando até a estatura de uma das grandes atrações da edição daquele ano, ou seja, um espaço nobre da programação. Curiosamente, quando os ingressos começaram a ser vendidos, a mesa com Ubaldo foi a primeira a esgotar.

O autor baiano foi destaque também na Feira do Livro de Frankfurt do ano passado, quando o Brasil foi o país homenageado. Sua participação aconteceu ao lado do diplomata e também escritor João Almino e o tema da discussão era Brasília. Ubaldo não deu por rogado e disse que se sentia “péssimo” quando visitava a Capital Federal – não por conta da população ordeira que mora lá, mas pela “população desordeira e parasitária que mora lá, na esfera política”.

Foram frases ditas com tal contundência, mas jamais desprovidas de razão e acuidade que marcaram as entrevistas de João Ubaldo Ribeiro. A seguir, alguns exemplos de suas boas lições, confidenciadas em entrevistas concedidas ao Estado ao longo da última década.

Planejamento da obra

“Sou experiente, tenho uma longa carreira, mas não consigo planejar nenhum de meus livros. Faço como Faulkner que, tão logo criava um personagem, saía atrás dele, anotando todos seus passos. Assim, quando acredito estar em um processo de criação, eu converso sobre essa história com minha mulher (minha vítima preferida) e também com alguns amigos. Mas, quando vou escrever, o resultado é algo totalmente diferente do que contei. Não é que perco a condução da narrativa ou que entre em algum transe. Mantenho o controle estilístico. O que acontece é que se engata uma marcha estradeira na fabulação e vou criando coisas a despeito de planos anteriores. Com isso, aquele que seria coadjuvante, deixa de ser; o caráter de um passa a ser o do outro, e assim por diante.”

Fascínio pela palavra

“Quando morei em Itaparica, eu tinha acesso livre à biblioteca da cidade pois a coordenadora me emprestava uma sala para trabalhar. Assim, eu vivia cercado de dicionários, tamanho o fascínio que tenho pela palavra. Aliás, tenho uma confissão a fazer: já me encantei tanto com certas palavras descobertas ao acaso no dicionário que inventei cenas, não saberia dizer quais, apenas para encaixar essas palavras. Tenho certeza que isso chegou inclusive a afetar o destino de personagens.”

Técnicas de escrita

“Como ensina o dito popular, tenho de matar um leão a cada nova escrita. Mas, entre minhas técnicas, está a de conviver com um inimigo imaginário, que me serve muito. Visualizo um sujeito, um homem, que me detesta e que lê com extrema má vontade minhas palavras. Ele aparece, por exemplo, quando, ao escrever um texto claramente comprometido com a norma culta, penso em utilizar intencionalmente uma forma controvertida, que foge à regra. Mas logo me vem à mente esse inimigo imaginário me criticando e, então, me curvo à normalidade, pois não quero lhe dar o gosto de ter razão. Penso muito nesse homem, que não me aparece claramente, apenas sua voz.”

Vantagens e desvantagens da tecnologia

“O avanço da tecnologia acaba me atrapalhando mais que ajudando. Veja bem, meu computador é potentíssimo, parece da Nasa. Quando escrevo, mantenho pelo menos três dicionários da língua portuguesa em linha, além de um corretor ortográfico e sites de pesquisa. Mas, ao consultar uma palavra, a leitura me leva a outro vocábulo, que leva a outro e, por fim, me descubro lendo o dicionário. É uma tentação muito grande, que provoca uma perda de tempo imperdoável. Outro problema é a ameaça de tornar uma afirmação sua em uma repetição de algo que é conhecido há muitos anos. Você pensa ter descoberto uma forma original de formular uma ideia e o Google te mostra que ela já foi criada há muito tempo. Lógico que é útil, mas para um romancista, é um atraso de vida.”

Seus clássicos

“Algumas de minhas obras, como Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro, que foram publicadas há mais de 30 anos, tornaram-se clássicos. Ou seja, as pessoas se acostumaram com a sua presença e, mesmo não tendo lido nenhuma delas, afirmam que sim. Também certos comentários elogiosos me dão uma tristeza. Por exemplo: a rapsódia 14 da Ilíada, de Homero, trata da interferência da participação dos deuses na guerra de Troia. Já o capítulo 14 de Viva o Povo Brasileiro relata a batalha de Tuiuti com interferência dos orixás. De propósito, acreditando que todos entenderiam a semelhança, utilizei a linguagem homérica na narrativa, fazendo uma paródia em seu sentido mais elogioso. E não é que fui elogiado pela forma original, como se fosse uma invenção minha?”

Neologismos

“Dificilmente eu invento palavras – se inventei, deve ter sido mais por ignorância ou porque achei que a palavra existia. Tenho muito pudor com neologismos. Eu estropio algumas palavras e espero que o leitor perceba. Usei algumas expressões usadas em Portugal e também regionais. Só quando tenho algum personagem pernóstico, como Nascimento Clarineta, que só fala difícil, aí utilizo sinônimos rebuscados, preciosos.”

Edição marca os 30 anos de ‘Viva o Povo Brasileiro’

Para comemorar os 30 anos da primeira publicação de Viva o Povo Brasileiro, que chegou às livrarias em dezembro de 1984, a Alfaguara vai lançar, em novembro, uma nova edição do romance. Estão previstos dois textos introdutórios no volume. Um deles será do escritor e editor Rodrigo Lacerda, filho de Sebastião Lacerda, antigo editor de Ubaldo, e que mediou a conversa com o escritor na Festa Literária Internacional de Paraty, um dos momentos mais especiais daquela edição de 2011. O outro é de Geraldo Carneiro, que já constava das edições anteriores da obra. Além disso, haverá uma bibliografia com todas as edições estrangeiras do livro.

A editora carioca, que edita a obra de Ubaldo desde 2008 – antes, seus livros saíam pela Nova Fronteira –, promete para janeiro do ano que vem a reedição do infantojuvenil A Vingança de Charles Tiburone. Publicado originalmente em 1990, retrata a aventura fantástica de um grupo de amigos no fundo do mar. Juva, Bolota, Mino, Tonhão, Quica e Neneca são agentes secretos do QG do Centro de Contra-Espionagem Danger People que têm de enfrentar um vilão terrível.

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Ubiratan Brasil, do Estado de S.Paulo